Australopitecos eram amamentados no primeiro ano de vida
Fósseis de dentes com cerca de dois milhões de anos que pertenciam à espécie Australopithecus africanus revelam que, tal como os humanos modernos, estes antigos hominídeos também amamentavam os bebés
O comunicado da Universidade de Monash, na Austrália, sobre o estudo publicado na revista Nature anuncia que este trabalho desvenda os “segredos maternais” dos nossos ancestrais mais antigos. O título do artigo na revista científica é menos apelativo referindo que as assinaturas [químicas] nos dentes de Australopithecus africanus revelam um stress sazonal na dieta. Os dois títulos são, obviamente, verdadeiros. De facto, através da análise dos fósseis de dentes desta espécie os cientistas chegaram a algumas conclusões sobre a sua dieta e, a partir daqui, perceberam que as mães australopitecas amamentavam as suas crias até, pelo menos um ano de idade, socorrendo-se desta opção mesmo depois disso, nos períodos de escassez de alimentos.
Outros estudos têm enfrentado o desafio de reconstruir a dieta dos hominídeos extintos. O caso do Australopithecus africanus será um dos mais difíceis, uma vez que, adiantam os autores deste artigo, esta espécie deixou-nos um rasto muito variado de morfologia dental que sugere uma dieta diversificada. Ainda assim, já sabíamos que comia frutas, folhas, gramíneas e raízes. Agora, sabemos mais. Os fósseis dos dentes de dois Australopithecus africanus, que terão vivido há cerca de 2,6 e 2,1 milhões de anos, mostram que também devemos incluir o leite materno na dieta destes antepassados.
O A. africanus é uma das primeiras espécies de hominídeos que combina características de humanos e símios e que viveram na região onde hoje encontramos a África do Sul, há entre três e dois milhões de anos. “Pela primeira vez, obtivemos novas percepções sobre como os nossos ancestrais criaram seus filhotes e como as mães tinham que complementar a ingestão de alimentos sólidos com leite materno quando os recursos eram escassos”, nota o geoquímico Renaud Joannes-Boyau, do grupo de investigação de geoarqueologia e arqueometria na Universidade Southern Cross, na Austrália.
Para Luca Fiorenza, outro dos autores da mesma universidade, “estas descobertas sugerem pela primeira vez a existência de um laço materno-infantil duradouro no Australopithecus e isso faz-nos repensar as organizações sociais entre os nossos primeiros ancestrais”.
Os dentes como as árvores
O que os cientistas fizeram foi “ler” os fósseis de dentes. Tal como olhamos para os anéis que marcam o tronco de uma árvore é possível retirar uma série de informações destes restos fossilizados medindo os biomarcadores químicos que foram preservados ao longo do tempo, explicam no comunicado. Os dentes, tal como as árvores, vão acumulando elementos nas suas várias camadas de tecidos de esmalte e dentina que (insistimos, tal como nas árvores) contam uma história. A dieta é, assim, encarada como uma parte significativa do chamado expossoma – a história que qualquer indivíduo guarda sobre a sua exposição ambiental, desde o seu nascimento até à morte. Nas marcas deixadas nos dentes é possível encontrar, por exemplo, o “stress nutricional”, que afecta significativamente a saúde e desenvolvimento dos indivíduos.
No artigo, refere-se que os “padrões na relação bário/cálcio nos dentes indicam uma dieta de leite materno por um período mínimo de seis a nove meses após o nascimento, seguido por um aumento de suplementos com alimentos não lácteos, que atingiu um pico em torno de 12 meses”. Após este depósito inicial com uma alta relação bário/cálcio nos dentes, a acumulação desses elementos – e do lítio – aumentou e diminuiu num padrão cíclico, constatam ainda os investigadores, acrescentando que um padrão semelhante foi observado em orangotangos selvagens modernos e que provavelmente reflecte mudanças sazonais na dieta.
“O padrão de crescimento dos dentes, que se assemelha aos anéis das árvores, permitiu que os investigadores determinassem as concentrações de bário, um elemento encontrado no leite, que se acumulara nos dentes ao longo do tempo e que fornece informação sobre os padrões maternais e de dieta”, nota ainda um comunicado do Hospital Monte Sinai (EUA), também da equipa. Christine Austin, uma das autoras do estudo, explica: “Os nossos resultados mostram que esta espécie está um bocadinho mais próxima dos humanos do que outros grandes símios que têm comportamentos diferentes na amamentação.” Os humanos têm longas infâncias e períodos de amamentação relativamente curtos, quando comparados como os símios, e por isso este resultado, sublinha, é importante do ponto de vista evolutivo, ainda que não seja possível perceber quando e como as mudanças neste comportamento aconteceram.
Os “segredos maternais” com mais de dois milhões de anos vão além da amamentação. Os resultados mostram ainda que os australopitecos seriam capazes de um cuidado parental prolongado, uma das marcas da evolução humana. “Isso provavelmente reduziu o número potencial de filhos, por causa do período de tempo em que os bebés dependiam de leite materno. O forte vínculo entre mães e filhos por vários anos tem implicações para a dinâmica de grupo, a estrutura social da espécie, relação entre mãe e filho e a prioridade que teve de ser dada à garantia de acesso a alimentos confiáveis”, conclui Renaud Joannes-Boyau. Assuntos de família e infância com mais de dois milhões de anos daquela que é também a nossa história.