Desmame. Pela força figurativa da palavra, parece trazida para refletir sobre a ideia de dependência em Babygirl, talvez mais um thriller erótico sobre uma relação proibida, sobre a ideia de desejo… Mas Babygirl não é nada disto, e no período de privação, a ideia a reter é outra. Quem já descontinuou uma medicação sabe que a sintomatologia é bem mais sentida nesse momento do que na sua introdução. A vertigem própria da descompensação; primeiro parece assustadora, mas após alguma convivência tem o seu quê de estimulante. Uma queda, picos de intensidade e desorientação que nos devolvem uma sensação de viver, na sugestão de um perigo. Há desconforto, mas ele prende-nos; meio que o ansiamos e forçamos, uma e outra vez.
É assim que o filme de Halina Reijn se apresenta. Desde o arranque, o ritmo das cenas, da montagem… Tudo evoca um certo desnorte. Percebemos que a perspetiva está centrada em Romy (Nicole Kidman), mas não se trata só de uma restrição de foco. Nem é só o que de frenético há no curso das cenas, acompanhado pelo ritmo das máquinas da empresa de entregas automatizadas gerida pela protagonista. Na verdade, talvez seja o ritmo das máquinas. Disparam e arrancam, para depois se interromperem, em súbito, num ritmo inconstante. Respostas a cliques a quilómetros de distância, movidos por impulsos em nada esquematizáveis, mas sim humanos e desestruturados.
Continuamos nestes disparos, entre flashes — há um uso de uma fala em off, desalinhada com o mover da boca de Samuel (Harris Dickinson), que ilustra bem a edição empregue para o transmitir ao espetador — e subitamente, o filme cria o seu nexo. É na primeira entrevista de mentoria, entre CEO e estagiário, que a máquina para. A frieza impessoal de um mundo corporativo digital contra o que nele há de vivo e que, por mais abafado, subsiste, podendo num estímulo irromper. Romy cede. Daí em diante, estamos presos à vertigem.
Samuel força um escabroso tabuleiro de jogo em que o desconforto é reinante, mas em que é também o prémio último, ou pelo menos conexo ao do prazer sexual. Por mais incómodo, nunca queremos que pare, assim como não o quer Romy, apesar viver de atormentada (mas alimentada) pelo risco reputacional e familiar que tudo acarreta. Não há desejo, não há romance na traição. Só sexo. Para Romy o interesse em conhecer o arquetípico cúmplice é nulo, e ao espetador são também poucas as sugestões de quem é que ele é. O mesmo se poderia dizer da protagonista e do interesse do estagiário nela. As poucas pistas podem ser lidas como parte da charada: a menção a um culto, o potencial peso da figura paterna (ecoa o refrão de George Michael: “I will be your father figure, / put your tiny hand in mine”), e o que isso comporta num retorno a uma infância submissa, num rasgo primitivo e animal.
Na outra face da charada, é curiosa a simultaneidade dos processos de leitura do espectador e do dito “invasor”, neste “home invasion movie”. Samuel aparenta numa primeira instância saber todos os passos a tomar (e que brutal forma de “entrar em jogo”). Da sua convicção deduzimos um perfil assertivo, certo de si, só para rapidamente riscarmos tudo e deitarmos fora a folha de rascunho quando este começa a emendar a voz de comando mesmo em frente aos nossos olhos (e aos de Romy). “Fake it till you make it” ("Finge até conseguires"). Efetivamente, Samuel conseguiu.
Não sabemos quem são estes personagens. Não temos de saber. Hoje, uma crítica frequente a qualquer filme, quando se acabam os argumentos, é a falta de desenvolvimento de certas personagens. Não se lhes é dada mais que a “carne”, não estão “fleshed-out”. Mas em dadas instâncias, é-lhes dada vida sabendo que não devem ser desenvolvidas. Olhemos para a tradição do teatro épico de Brecht, à função do arquétipo como portal para algo maior. De podermos extrapolar as características de um indivíduo para todo um grupo, e daí configurarmos um debate crítico maior.
Esse sim é o domínio de Reijn em Babygirl, o seu tabuleiro de jogo. Quão refrescante é esta perspetiva, alicerçada na dialética do confronto geracional, nos predicados da hierarquia corporativa, na insinceridade do wokismo de frase feita. A realizadora e os seus personagens forçam o desconforto pela aspereza do choque direto. Mesmo arriscando previsibilidade (os comportamentos espelhados de mãe e filha, a instrumentalização emocional do feminismo na ameaça do cancelamento, o inevitável encontro entre os três vértices do triângulo amoroso…), atinge sempre os seus desígnios com uma mão de Ases, sendo o exemplo perfeito o encontro entre Romy, Samuel e o marido Jacob (Antonio Banderas). Novamente, o exercício requer que se parta da ideia repetida, e só daí é possível ironizar e questionar o atual estado de coisas. É assim que o jogo se permite a tiradas como a de Dickinson, em resposta a Banderas após uma troca de socos, num registo à la Twitter de Gen-Z:
"O masoquismo feminino é uma fantasia masculina", diz Jacob.
"Essa é uma ideia datada da sexualidade", responde Samuel.
Babygirl não nos facilita respostas. O prazer está no jogo e na dúvida. Contudo, e retomando o início, acredito que tudo no filme, incluindo a dinâmica sexual em que se centra, não é senão resultado da tal vertigem. A descompensação que vivemos enquanto sociedade (nas dinâmicas pessoais, familiares, profissionais), e como esta se faz notar na introdução das novas gerações no mundo real. Não é por acaso que o filme é quase só populado por jovens adultos. E haverá melhor forma de mediar o confronto geracional do que nivelá-lo à altura da cama? Que mundo é este que nos deixam? Que geração reinante é esta, se ela mesma se apresenta débil na tal maturidade exigida? Não será que todos fingimos ser mais certos sobre nós mesmos do que realmente somos?
O filme vai ser incompreendido, visto como o tal thriller erótico que eu julgo que não é. Já o está a ser. A Grey-ficação do fenómeno, num filme que nem pretende ser sexy. Mas a sua sina poderia ser pior. É a sua forma de ser visto, porque merece.