Solos: “A porta aberta aos privados tem riscos”, incluindo a “suspeita de malandrice”

Responsabilidade da reclassificação um solo rústico para urbano fica nos ombros dos órgãos municipais. As Assembleias Municipais avisam já que precisam de formação para poder tomar estas decisões.

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Municípios precisam de capacitação para tomar decisões informadas (foto arquivo) Adriano Miranda
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O novo regime excepcional permite, por decisão dos órgãos municipais, que seja possível construir, edificar, fazer urbanização onde hoje não é possível, como é o caso de solos rústicos e outros classificados como Reserva Ecológica ou Agrícola. Na nota de promulgação, o Presidente da República justificou a luz verde "atendendo à intervenção decisiva das assembleias municipais e à urgência no uso dos fundos europeus e no fomento da construção da habitação”. No entanto, também para as assembleias municipais, este processo não é pacífico.

A Associação Nacional de Assembleias Municipais (ANAM) clama por “capacitação” para poder decidir. Em declarações ao PÚBLICO, o presidente da ANAM, Adelino Almeida, admite que as assembleias municipais não têm o conhecimento necessário sobre estas questões e precisariam de formação “para saber quem consultar e poder tomar decisões” nestes processos de licenciamento. “Temos cerca de 30 eleitos por cada assembleia, aproximadamente 10 mil pessoas, mas precisamos de uma clarificação destas novas regras para tomar decisões informadas”, diz, apelando ainda à inclusão de verbas destinadas a esta formação no orçamento dos municípios.

Mais ainda quando se abre a porta aos privados, nota o representante da ANAM que lembra que o chamado "simplex urbanístico" já tinha permitido esta reclassificação de solos rústicos em solos urbanos, mas apenas em terrenos de propriedade pública e por deliberação da câmara e assembleia municipal.

“Quando se trata de propriedade pública, é de todos nós, mas a porta aberta aos privados tem riscos. Quando se decide a favor de privados, logo vem a seguir a suspeita de malandrice ou de interesses, é algo que é associado à corrupção no poder local. É muito menos suspeito quando enriquecemos a propriedade pública”, avisa Adelino Almeida.

Falta “articulação com restante regulação”

No parecer da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) sobre esta alteração legislativa, com data de 18 de Dezembro, a que o PÚBLICO teve acesso, o impacte ambiental não se destaca como uma das principais preocupações. Em vez disso, a associação liderada por Luísa Salgueiro, sublinha a “redobrada responsabilidade do interesse público em causa, que é preciso ter presente”.

A nova proposta vai numa direcção diferente do "simplex urbanístico" que já existia para a reclassificação de solo rústico para urbano para “finalidades habitacionais”, nomeadamente inclui, “sem discriminar e distinguir, finalidades conexas e ‘usos complementares’” e é “aplicável à promoção privada de soluções de ‘habitação de valor moderado’”.

O resultado gera dúvidas e pode levar a custos excessivos para muitas famílias. Um exemplo? “Vejamos o caso paradigmático de Lagos, que poderia ser o de muitos outros municípios, e não só do Algarve, cuja aplicação redundaria num preço de venda de 380 mil euros para uma fracção de 100m2.”

São muitos os avisos no parecer de Dezembro que reclamava um projecto de decreto-lei “aperfeiçoado”, adaptado aos instrumentos municipais de planeamento e “articulado com o restante edifício legislativa”. No documento reconhece-se que “é complexa a transposição de uma lei geral e aplicável a todo o território, que poderá entrar em conflito com a sustentabilidade do território e a disponibilidade do solo como bem público”.

“É sabido que a dispersão de construções no solo rústico comporta uma fundamentada e sopesada ponderação de vários factores e riscos, tanto ao nível da sustentabilidade ambiental, da guetização de pessoas, como dos encargos com a infra-estruturação geral do território”, acrescenta o parecer na ANMP, que pede que o texto da proposta legislativa seja “melhorado, sendo fulcral que – antes de mais – o Governo promova a sua adequada articulação com a restante regulação do ordenamento do território”.