O que fazer com milhares de toneladas de caroços de azeitona em Portugal? O destino muda em 2025

Governo vai alterar em 2025 a classificação do caroço de azeitona de resíduo para subproduto. Para já, em Portugal, os caroços servem só para estranhos campeonatos para ver quem os cospe mais longe.

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Nesta campanha espera-se uma recolha de 1,2 milhões de toneladas de azeitonas a nível nacional e um volume de caroços que ficará pelas 156 mil toneladas TOLGA DOGAN/GettyImages
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Quando se olha para a imensidão de olivais modernos no Alentejo, só se pensa no azeite que podem produzir, cerca de 80% da produção nacional. Mas nem só de “ouro líquido” vive a produção olivícola. Da azeitona, depois de moída, centrifugada ou prensada, extrai-se, para além do azeite, água e um resíduo final composto de alguma polpa e casca (que são transformadas nas fábricas de bagaço de azeitona) e caroço. Muito caroço, centenas de milhares de toneladas. O que fazer com estes despojos que têm mercado e valor noutros países? Graça Carvalho, ministra do Ambiente, adiantou ao PÚBLICO que, no início de 2025, Portugal vai alterar a classificação do caroço de azeitona, passando de resíduo a subproduto, à “semelhança do que já acontece em Espanha”.

O resíduo de caroço de azeitona “representa 13% da sua massa total”, explicou ao PÚBLICO Susana Sassetti, directora executiva na Associação de Olivicultores e Lagares de Portugal (Olivum). E avança uma estimativa da produção na campanha em curso: se for alcançada, como se espera, uma recolha de 1,2 milhões de toneladas de azeitonas a nível nacional, “será obtida uma produção de 170 mil toneladas de azeite, e um volume de caroços que ficará pelas 156 mil toneladas”. Só nos concelhos da região Alentejo, com maior incidência em Beja, Ferreira do Alentejo e Serpa, concentram-se 60 lagares, onde estão acumuladas muitas dezenas de milhares de toneladas de caroços de azeitona.

Na deslocação que fez a um dos maiores lagares da região instalado nos arredores de Beja, no final de Novembro, a ministra do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho, deparou-se com uma imagem que a surpreendeu: “Fui confrontada com enormes montes de caroços de azeitona que pareciam dunas de areia.”

José Manuel Gonçalves, proprietário do lagar, comenta, em declarações ao PÚBLICO, a observação da ministra. “Temos muito caroço de azeitona em stock, mas não o conseguimos colocar no mercado porque é difícil vender o que é considerado um resíduo”, observa.

Este condicionalismo leva os interessados a adquiri-los em Espanha, onde o caroço de azeitona é considerado um subproduto. “Ninguém arrisca queimar um resíduo pelas consequências que daí podem advir” como infracção ambiental, salienta o empresário, realçando o seu elevado poder térmico. “É como queimar azinho”, compara.

Também Bruno Cantinho, director executivo na Olivogestão, empresa que lidera um lagar em Serpa, reconheceu ao PÚBLICO a existência de “grandes complicações em colocar no mercado o caroço de azeitona, que é excelente” para ser utilizado como biomassa, frisando que tanto em Espanha como em Itália é considerado um subproduto.

Na 11.ª edição das Olivum Talks, realizadas em Beja a 3 de Outubro, Sílvia Ricardo, directora do Departamento de Resíduos da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), admitiu que este organismo “não tinha forma de excluir o caroço de azeitona da condição de resíduo”, argumentando que “Portugal tem uma visão mais restritiva sobre o tema” e que a Comissão Europeia “fora omissa” nas respostas que deu sobre a classificação a dar.

Portugal: caroço passa de resíduo a subproduto

Graça Carvalho reagiu à indefinição referida por Sílvia Ricardo e, “em linha com a directiva europeia das energias renováveis”, adianta que Portugal vai alterar a classificação do caroço de azeitona, passando de resíduo a subproduto, à “semelhança do que já acontece em Espanha”, garantiu ao PÚBLICO a ministra do Ambiente e Energia.

A reclassificação assenta “numa lógica de promoção da economia circular e de promover ainda uma maior utilização de energias renováveis, nomeadamente da biomassa”, justifica a ministra. “Não o considerar como subproduto significa uma perda de competitividade para o nosso país e, principalmente, para a região do Baixo Alentejo”, acrescenta.

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Miguel Madeira

A classificação do caroço de azeitona derivado da extracção de azeite foi reivindicada pela Olivum, alegando que o seu "estatuto" de resíduo “acarreta grandes dificuldades na valorização comercial e impossibilita a sua exportação, quando existe uma procura mundial crescente pela sua capacidade calorífica”.

A ministra do Ambiente já accionou o processo para alterar esta classificação. “Trata-se de um processo rápido, devendo o mesmo estar concluído durante os primeiros meses de 2025." Assim, milhares de toneladas de caroço de azeitona que se têm acumulado junto aos lagares na região alentejana deixarão de ser uma dor de cabeça e poderão ser rentabilizadas como biomassa para a produção de energia térmica.

O negócio: desde a energia a almofadas e tijolos

O estudo A Actividade Internacional de Extracção de Caroço de Azeitona como Energia Limpa. Oferta, procura e efeitos económicos, sociais e ambientais. O caso particular de Espanha, da autoria da empresa de consultoria agrícola Juan Vilar Consultores Estratégicos, destaca a importância comercial deste subproduto.

Em Espanha, com mais de 2,7 milhões de hectares de cultivo de azeitona, são produzidos 6,2 milhões de toneladas de azeitona por campanha, que fornecem 450 mil toneladas de caroços, das quais 323,5 mil toneladas são comercializadas, enquanto o restante é consumido em lagares e fábricas de bagaço de azeitona como fonte de calor para processos de extracção, respectivamente, de azeite ou óleo.

O caroço da azeitona gera energia para abastecer mais de 100.000 lares espanhóis e a sua comercialização como biocombustível já dinamiza um negócio que supera os 50 milhões de euros por ano.

Este subproduto da azeitona não está a ser utilizado apenas na produção de energia. Serve para quase tudo. Para além da sua elevada capacidade calorífica pelas gorduras que lhe estão associadas, a empresa Charcolive de Córdoba enche travesseiros com caroços de azeitona pela melhor adaptação que possibilitam ao contorno da cabeça e pescoço.

É também aplicado na construção de edifícios. A utilização deste material permite não só reduzir a densidade dos materiais de construção, tornando-os mais leves, mas também melhorar o isolamento térmico e acústico. Em 2020, na cidade de Guichen, em França, foi inaugurado um campo de futebol feito com caroços de azeitona. A sua aplicação em pavimentos sintéticos não apresenta qualquer risco para a saúde e o ambiente, e não emite emissões tóxicas em caso de chuva ou fricção na pele do jogador.

Investigadores da Universidade de La Rioja em Logroño, Espanha, já fabricam tijolos com caroços de azeitona para reduzir a pegada de carbono dos edifícios e o impacto ambiental da construção. E cientistas da Universidade de Granada concluíram que podem absorver metais pesados dissolvidos na água, ficando em condições de utilização como biocombustível sem afectar o ambiente com emanações tóxicas.

Cuspidores de caroços? Recorde de 36 metros

Para a esmagadora maioria dos cidadãos, o destino a dar ao caroço de azeitona é o balde do lixo. No entanto, em vestígios pré-históricos, foram encontradas nas cavernas de Barranco de los Grajos e La Serreta, na cidade murciana de Cieza, pinturas rupestres de um homem primitivo a preparar-se para atirar um caroço de azeitona.

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John Copland/GettyImages

Nas aldeias do interior alentejano, há muitas décadas e em dias de festa ou em convívios entre amigos à porta de uma qualquer taberna, apareciam os lançadores ou cuspidores de caroços de azeitona. Mais recentemente, Luís Grilo, natural do concelho do Crato, no distrito de Portalegre, replicou na sua terra o que vira na localidade espanhola de Cieza, quando lá trabalhou uns tempos: campeonatos de lançadores de caroços de azeitona.

“Aquilo é uma loucura que chega a juntar até cinco mil pessoas”, contou ao PÚBLICO, descrevendo o entusiasmo e a participação de homens e mulheres que “cuspiam o mais longe que podiam o caroço de azeitona” em torneios que cativavam a curiosidade e o entusiasmo de centenas de pessoas.

No dia 25 de Agosto, e integrado no programa das festas de Verão da aldeia de Vale do Peso, no concelho do Crato, realizou-se o 4.º Concurso de Lançamento de Caroço de Azeitona, que teve a presença de lançadores espanhóis. O primeiro torneio foi realizado em 2013. “É uma brincadeira que já levámos a Lisboa e até aos Açores, e com patrocinadores que oferecem licores, azeite, gasolina ou sabonetes”, conta Luís Grilo.

Quem concorre contribui com um euro e o montante final tem objectivos solidários com donativos para a Igreja, lares, colectividades, bombeiros ou famílias carenciadas.

Na cidade de Moura, “fazemos os dois torneios anuais na Páscoa e no dia de S. Martinho”, explica ao PÚBLICO Jorge Liberato, organizador dos eventos, frisando que se trata de “uma brincadeira que termina sempre num ensopado de borrego”.

Numa região coberta de olival, era inevitável o consumo de azeitona de mesa, que acabou por dar origem ao torneio de lançadores ou cuspidores de caroços de azeitona. “Nos hábitos mais antigos dizia-se que uma azeitona criava condições para beber cinco litros de vinho. Era a brincadeira mais comum”, descreve, com humor, Jorge Liberato. E explica: era costume surgir sempre um amigo a desafiar os que lhe estavam próximos para o lançamento de caroços de azeitona. “Quem perdia pagava um copo aos companheiros que participavam na brincadeira."

Os torneios que agora se realizam oferecem uma garrafa de vinho e uma garrafa de azeite ao primeiro, segundo e terceiro classificados. E, nas três semanas que antecedem os torneios, é tempo de treino.

Um dado importante: os lançadores recusam-se a lançar azeitonas produzidas nos novos olivais. “Nós preferimos as variedades nacionais. O caroço é mais pesado”, pormenor que possibilita a obtenção de melhores marcas.

As regras que presidem aos torneios recorrem ao que acontece nas provas de lançamento do dardo, peso ou disco, mas com uma diferença: o que conta é o ponto onde o caroço pára e não onde bate. E há uma fita métrica para medir a distância alcançada.

Na edição de 2023 em Vale do Peso, foi batido o recorde nacional, que se encontra agora fixado em 16,65 metros e foi obtido por Joaquim Martins, habitante do Crato. Mas o homem que cospe caroços de azeitona mais longe, Salvador Galipienso, é de Alicante e atingiu 36,54 metros no torneio da cidade espanhola de Elche. É recorde do mundo desde 2014.

“Temos de levar a vida assim, para resistir ao nevoeiro que está a cobrir o mundo”, remata Jorge Liberato.