Mesmo uma única bebida alcoólica por dia pode aumentar o risco de doenças cardiovasculares
Um grupo de cientistas da China e do Reino Unido acompanhou quase 500 mil cidadãos chineses e registou a quantidade de álcool ingerida bem como outros factores durante dez anos. A equipa descobriu que, mesmo em moderação, o álcool pode influenciar o risco de doenças do coração.
O consumo baixo ou moderado de álcool pode não ser tão benéfico para o coração quanto se pensava até agora. Um grupo de investigadores britânicos e chineses descobriram que no caso de enfartes e outras doenças associadas ao coração, mesmo um nível baixo de de álcool é prejudicial.
O grupo oriundo de várias universidades e entidades ligadas à saúde, entre elas da Universidade de Oxford, da Universidade de Pequim e da Academia Chinesa de Ciências Médicas, decidiu analisar o impacto do álcool em enfartes do miocárdio numa amostra alargada de população chinesa durante dez anos.
O estudo publicado esta sexta-feira na revista científica Lancet teve também a colaboração de investigadores de várias instituições de ensino superior como a universidades de Pequim, na China, ou de Bristol, no Reino Unido.
“Com o recurso a dados do China Kadoorie Biobank, uma plataforma nacional chinesa que investiga as grandes mudanças genéticas na população e as principais mudanças ambientais causadoras de doenças crónicas, investigamos a relação causa e efeito entre álcool e doenças cardiovasculares, comparando os resultados da epidemiologia convencional (a classificação dos participantes segundo o que os próprios reportavam ingerir em termos de quantidade de álcool) e epidemiologia genética (classificação dos inquiridos tendo em conta a ingestão média de álcool tendo em conta o seu genótipo)”, explicam os autores do estudo.
Para base da investigação foram recrutados quase 500 mil adultos (210.205 homens e 302.510 mulheres), entre Junho de 2004 e Julho de 2008, de dez áreas rurais e urbanas da China. Além do registo da quantidade de álcool ingerida, a equipa baseou-se também nos registos médicos, estilo de vida e informações genéticas dos participantes. Os investigadores registaram todas estas mudanças durante cerca de dez anos, até 1 de Janeiro de 2017, e monitorizaram também as mudanças nos riscos de doenças cardiovasculares (como o AVC isquémico, as hemorragias intracerebrais ou os enfartes do miocárdio).
Os homens bebem 20 vezes mais do que as mulheres
Os padrões de consumo de bebidas alcoólicas foram reportados por cada participante e divididos em quatro categorias: bebedores actuais (consumo moderado de álcool na maior parte das semanas do ano anterior), não bebedores (não bebeu nem bebe álcool), bebedores ocasionais (consumo moderado em anos passados, mas não bebeu na maioria das semanas do ano anterior) ou ex-bebedores (pouco ou nenhum consumo de álcool no passado, mas bebeu na maioria das semanas do ano anterior).
Apesar de a investigação ter como base a população chinesa, o objectivo da equipa era avaliar os efeitos causais da ingestão de álcool que devem ser relevantes para os seres humanos em geral. “Este tipo de estudo genótipo na China pode fornecer evidências relevantes em termos gerais sobre o problema porque duas das variações genéticas que alteram o metabolismo do álcool são muito comuns na China. A mais importante destas, a rs671, reduz a ingestão de álcool para quase zero em ambos os sexos”, lê-se no relatório do estudo.
Na China, os investigadores estimam que os homens bebam mais de 20 vezes mais do que as mulheres, daí que esta variação tenha sido tida em conta para avaliar os efeitos do álcool nos homens. Em concordância com este dados, apenas 2% das mulheres inquiridas disseram consumir álcool na maior parte das semanas, em comparação com 33% dos homens.
Cerca de um terço da população do leste da Ásia têm variantes genéticas que afectam a maneira como o álcool é digerido, o que pode tornar a ingestão de álcool numa experiência desagradável. O estudo agora apresentado afirma que as pessoas com estas modificações genéticas bebem menos. No entanto, estas variações são aleatórias e podem manifestar-se em qualquer um, independentemente da sua situação social da sua saúde.
Numa primeira fase, os cientistas concluíram que parecia haver um efeito protector do álcool contra doenças cardiovasculares quando consumiam cerca de 100 gramas de álcool por semana. No entanto, depois de usarem dados genéticos de um grupo menor de participantes, e tendo em conta a localidade onde este grupo residia para prever a quantidade de álcool consumida pelos homens, os investigadores não encontraram nenhum efeito protector do consumo moderado de álcool. Pelo contrário: por cada 280 gramas adicionais de álcool consumidos por semana, o risco total de um enfarte aumentou para 38%.
Quando analisaram o baixo consumo das mulheres chinesas relacionadas maioritariamente com razões culturais, os cientistas não encontraram nenhuma ligação entre as suas variantes genéticas e o risco de doenças crónicas relacionadas com o coração. Segundo as conclusões da equipa, este dado pode reforçar a conclusão de que o consumo de álcool está de facto por detrás do aumento do risco de enfartes verificado nos homens.
Nas análises epidemiológicas genéticas, os riscos excessivos de AVC isquémicos ou das hemorragias intracerebrais foram de 27% nas mulheres e 58% nos homens por 280 gramas de álcool por semana. O estudo estima ainda que, entre os homens chineses, o álcool é a causa de 8% de todos coágulos no cérebro, assim como de 16% de todas as hemorragias no cérebro.
“Esta ingestão de álcool é aproximadamente a quantidade média consumida por um terço de todos os homens que eram actuais bebedores. Assim sendo, estas descobertas sugerem que, entre os homens, o álcool foi o responsável por cerca de 8% de AVC e 16% de hemorragias intracerebrais”, lê-se na conclusão do estudo.
Uma vez que os participantes do estudo afirmaram consumir principalmente bebidas espirituosas, os efeitos de outras bebidas, como o vinho tinto, por exemplo, não foram tidos em conta para os cálculos finais.
Muito por esclarecer
Os estudos sobre os efeitos do álcool na saúde são frequentes, mas as conclusões variam de equipa para equipa e ainda há muito sobre esta relação e os seus mecanismos por esclarecer.
Em 2006, um estudo apresentado no 4.º Simpósio Europeu sobre Cerveja e Saúde, em Bruxelas, concluía que o álcool ingerido com moderação tem efeitos protectores conta doenças cardiovasculares e que, tal como o vinho, a cerveja bebida com moderação poderá ter efeitos benéficos para a saúde.
Também em 2013, uma equipa da Universidade de Harvard (EUA), publicava os primeiros resultados de um estudo que sugeria que o resveratrol, composto presente na casca das uvas, nos amendoins e nos frutos vermelhos, pode prolongar a vida de ratinhos de laboratório.
Já em 2018, uma equipa de cientistas do Reino Unido investigou uma das íntimas ligações entre o álcool e o cancro através da análise do ADN em células estaminais. Nas experiências em ratinhos, os cientistas recorreram à administração de etanol nos animais e concluíram que a exposição ao álcool provoca danos genéticos permanentes.
O estudo agora divulgado foi financiado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia da China, Kadoorie Charitable Foundation, de Hong Kong, Fundação Nacional de Ciência Natural da China, Fundação Britânica do Coração, Cancer Research UK, pela farmacêutica GlaxoSmithKline, Conselho de Pesquisa Médica e Wellcome Trust do Reino Unido.