Mas é mesmo tipo uma feira, não é?
Provocou alguma comoção a transmissão de uma conversa pessoal sussurrada entre dois ministros num jantar de Natal. Disse um para o outro que a concertação social seria assim como uma “feira de gado” e deu-lhe os parabéns pela conclusão de um acordo nessa “feira”. Não consta resposta muito conclusiva do homenageado, mas a expressão já foi suficiente para incendiar redes sociais, que aliás ardem por pouco, para levar os partidos de direita a exigir solenemente explicações, para impor ao ministro umas desculpas apressadas, ele que valoriza a concertação social estratégica mais do que tudo, e para dar às associações patronais a oportunidade de manifestarem uma fria condescendência natalícia. Em resumo, uma crise. Uma pequena crise, mas ainda assim uma crise.
Para os ministros, fica o conselho de António Costa: mesmo no café cuidem do que dizem. Creio no entanto que o comedido conselho do primeiro-ministro à sua gente é tão útil quanto inaplicável. Haverá sempre uma câmara de televisão na sala de jantar de Natal do grupo parlamentar, haverá sempre uma inconfidência, haverá sempre uma intriga.
Só que condenar o atrevimento microfónico é cómodo demais. A questão é outra, ou também é outra: a concertação social é assim como uma “feira de gado”? O ministro tinha razão? Conhecendo mal a “feira de gado”, presumo que ele se referia à analogia com a negociação entre o comprador e o vendedor de um boi, ou de um burro, ou de uma ovelha, em que ambos puxam o negócio para a sua vantagem, alardeiam virtudes ou defeitos, mas querem ajustar um preço. Se é essa a comparação, não vejo onde está a ofensa ou sequer o erro. Sim, a concertação social deve parecer essa “feira” e Santos Silva terá razão, tanto na constatação (é como se fosse uma feira) quanto no desabafo (será uma feira em que os feirantes usam a sua estratégia e força para tentarem o preço conveniente).
Ao longo das semanas anteriores ao acordo sobre o Salário Mínimo, as associações patronais negociaram os dinheiros com uma avidez que só comprova que se sentiam na feira. Saraiva chegou a dizer que os 557 euros “ameaçam” a concertação social, depois que 1% de aumento do Salário Mínimo seria adequado, logo 535, depois que nunca devia passar dos 540. Disse depois que podia ser mais, mas “depende das contrapartidas”. Acrescentou finalmente que o SMN pode subir, desde que as leis laborais não desçam.
No fim das contas, o patronato conseguiu que o governo pague cerca de 7 dos 17 euros que fazem a diferença entre o que declarava aceitar e o que veio a ser decidido. Tudo na TSU é provisório, esclarece o ministro, mas o certo é que a parte do salário paga pelo Estado aumenta pelo segundo ano. E o governo, que se comprometeu em programa jurado que haveria 580 em 2018 e 600 euros em 2019, preferiu deixar agora esses valores em suspenso.
Portanto, uma feira.
Mas a feira tem outro aspecto, que é a prosápia. A concertação social é a ficção de um universo paralelo à decisão democraticamente controlada: ali só se respeitam os beneméritos que são os donos da economia nacional, ali entende-se que o empresário é que move a terra, ali financiam-se os patrões se tiverem que pagar salários mínimos ou impostos mínimos, ali desbarreta-se o Estado perante algum percalço dos que têm a augusta força do dinheiro. Ali não vigora o peso das eleições ou os governos constituídos, ali há uma ordem suprema, que é a da propriedade. Se os patrões devolvem alguma coisa, precisam de ser compensados. Se pagam, precisam de receber. Nada se cria, tudo se transforma, tudo volta em forma de subsídio ao bolso de quem tem.
Ou seja, exactamente como na feira, o comprador e o vendedor têm que parecer o que não são para conseguirem o preço que não merecem. Santos Silva tinha razão, essa é que é essa.