Uma festa, um objecto, um sonho e uma descoberta

Um livro assinado por oito pessoas. Quatro escreveram, quatro ilustraram. Em comum têm mais do que o talento e por isso formam uma comunidade.

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“A Festa do Lago foi um sucesso e a Sr.ª Hi Ena volta a exibir o seu famoso sorriso” Bruno de Almeida
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Processo de criação das ilustrações da história O Termómetro da Felicidade Bruno de Almeida
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“— Alex, perdeste alguma coisa? — Não, mãe! A professora pediu para levarmos um objecto que tenha a ver connosco. É mesmo difícil!” Ana Casimiro
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“Yusef sente o peso da desilusão. E como é que se pode dançar sem leveza?” Fatumata
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“O meu irmão corre contra o tempo, durante a semana inteira” Nicole Ostrovan
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Capa do livro Sr.ª Hi Ena, Alex, Yusef e um Rastro de Purpurinas , editado por Queer Art Lab e Trumps
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Ninguém fica de fora deste livro de quatro histórias. Na primeira, todos os animais são convocados para uma festa no lago; na segunda, todos os alunos terão de levar para a escola um objecto com que se identifiquem; na terceira, um menino que não é branco concretiza o sonho de ser bailarino e ter umas sapatilhas cor de pele (da sua); na quarta, há palmas para um irmão super-herói, que à noite se transforma.

A Sr.ª Hi Ena, Alex, Yusef e um Rastro de Purpurinas resulta de um projecto de residência artística dirigido pelo Queer Art Lab (QAL), no âmbito dos seus laboratórios Imersão.

“Pretendemos com estes projectos promover a diversidade artística e criativa dentro da comunidade LGBTQIA+. Colaboramos com artistas em diferentes fases da sua carreira, de forma a impulsionar e ao mesmo tempo promover o encontro, a troca e o crescimento”, diz ao PÚBLICO Ary Zara, director artístico do QAL.

Se é daqueles leitores que “torcem o nariz” quando se fala nesta comunidade, reconsidere. “Só quisemos contar histórias que não fossem repetitivas, criar narrativas sem amargura ou tristeza. E não estamos aqui para doutrinar ou transformar alguém. Não há qualquer tipo de intenção. Se as histórias ressoarem nos leitores, tudo bem. Se não ressoarem, tudo bem também”, diz Ary Zara, argumentista e realizador de cinema.

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“Todos os caminhos vão dar à Festa do Lago. E os convidados atravessam o mundo, o tempo, as galáxias” Bruno de Almeida

O projecto contou com as mentorias de Isabel Zambujal (para o texto) e de Yara Kono (para a ilustração), com a colaboração da editora Planeta Tangerina, o financiamento da discoteca Trumps e o apoio da Casa Independente e da Casa do Comum (Lisboa), onde o livro foi lançado, a 21 de Junho.

Joana Branco, que “quando era pequena queria ser artista de circo e pendurou a bicicleta no estendal para ver se tinha jeito”, assina o primeiro texto, O Termómetro da Felicidade, e diz ao PÚBLICO via email: “A história surge com uma dupla função, a de contar histórias felizes na comunidade LGBTQIA+ e a de representar a pluralidade de comportamentos e orientações sexuais através duma fábula. É uma história sobre o poder da comunidade (que aqui se junta para celebrar o Pride), sobre amor-próprio e sobre sentirmo-nos bem na nossa pele. No nosso pêlo, neste caso!”

Bruno de Almeida, brasileiro, foi o escolhido para ilustrar esta história. “Quando recebi o texto da Joana, deparei com um grande desafio e uma grande responsabilidade em trabalhar uma narrativa de género poético, que, neste caso, tem a ideia de enriquecer a mente do leitor com imagens que representam a harmonia de diferentes seres vivos, como narrado na história”, diz ao PÚBLICO.

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“Depois do concerto, segue-se a actuação do DJ Sa Po. É imparável: respira e bebe água através da pele. Ao seu ritmo, não se esgota a energia para dançar. Já lhe deram um beijo, mas não se quis transformar em príncipe” Bruno de Almeida

E acrescenta: “Quando pensamos na representação desses seres, é fácil deslizar-se por alguns estereótipos e continuar perpetuando-os através da literatura para infância, por isso, foi um trabalho meticuloso com muito cuidado para pensar uma representatividade inclusiva de uma forma bem-humorada, onde alguns personagens são híbridos, com cores diferentes da realidade para enriquecer a imaginação de leitores em diferentes faixas etárias.”

Joana Branco diz ainda: “O reino animal permite-nos trazer à tona a riqueza de diferentes orientações sexuais, identidades de género e modelos de relação de uma forma leve e didáctica. Há animais que manifestam comportamentos homossexuais, como a girafa e o leão; há animais que mudam de género, como o sapo; há animais que vivem em sociedades matriarcais, como as hienas.”

E conclui: “A natureza a mostrar a sua sapiência – simplificando e naturalizando assuntos comummente vistos como complexos.”

Bruno de Almeida leu o texto várias vezes, mas em muitos momentos decidiu “criar um afastamento para pensar caminhos que também subvertessem a história e criassem novas narrativas”. Especificando: “Quando, por exemplo, o texto fala sobre o trajecto dos personagens para um grande encontro, questionei-me: que tipo de transporte usam? É sustentável? Tem baixo impacto de carbono?”

Como resposta a essas questões, desenhou “um banana-carro ou uma bicicleta em formato de peixe, sendo o leitor convidado a interpretar o que são esses transportes dentro da sua própria perspectiva”.

Poder ser o que se quiser

Na segunda história, A Descoberta, escrita por Laura Falésia e ilustrada por Ana Casimiro, Alex respondeu ao desafio da professora para que levasse para a escola um objecto que tivesse que ver com ele. Escolheu a plasticina: “Ela pode ser o que quiser.”

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“ Uaaauuu! Alex escolheu-me. E deu-me voltas. E mais voltas, até eu ficar tonta", diz a plasticina Ana Casimiro

Na terceira narrativa, Yusef e a Dança das Cores, escrita por David J. Amado e ilustrado por Fatumata, um rapaz tem o sonho de ser bailarino e vai para uma escola de ballet. “A professora recebe o novo aluno com um sorriso. E com umas sapatilhas cor de pele. Cor de pele? A pele de quem?”

Yusef desanima, mas pode contar com a ajuda e sabedoria do pai: “Nunca imaginou que o pai conseguisse pintar umas sapatilhas com as cores da aurora do céu nocturno. Para que se sentisse poderoso como a terra.”

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“Yusef gira. Mais. Salta. Mais. Roda. Mais. Está tão contente por voltar à Escola de Ballet” Fatumata

Por último, a história Palmas para o Meu Irmão!, com texto de Danilo Gouveia e ilustração de Nicole Ostrovan. O irmão mais velho de um rapaz sai todos os sábados depois do jantar. Intrigado, o pequeno pergunta-se: “Será que é um espião? O escolhido da presidente, para uma grande missão. Não, talvez seja padeiro! Ou será um guitarrista e vai ser capa de revista? Ou será um aventureiro? Também pode ser detective.”

Acabará por encontrar uma pista: “Um rastro de purpurinas, muito fora do comum.” Debaixo da cama encontra uma capa. Mais adiante, há-de ver o irmão de saltos altos, cabelos compridos e saia curta. Logo conclui que o irmão é um super-herói. Talvez seja mesmo.

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“Depois do jantar, o meu irmão sai. E eu fico cheio de cócegas na cabeça: onde vai?” Nicole Ostrovan

Desenhos criados em movimento

Voltando aos autores da primeira história, o ilustrador Bruno de Almeida conta como durante o período da residência fez o trajecto Porto-Lisboa duas vezes por semana, com ida e volta no mesmo dia. Vive no Porto. “De certa forma, eu sentia que estava vivendo o roteiro escrito por Joana, pois estava sempre a ir ao encontro da comunidade que fez o livro nascer. Toda a ida a Lisboa foi uma celebração ao longo dos dias. E posso dizer que os desenhos nasceram dentro do autocarro, de pernas para o ar ou entre os meus cochilos.”

As ilustrações finais acabaram por ser “reflexo desse movimento contínuo” e foi importante para ele “incorporar essa realidade no resultado final”.

Sobre a técnica, descreve: “Começo sempre por desenhar à mão, onde sinto que tenho maior liberdade e intimidade com o papel. Crio os espaços e logo começo a trabalhar com digital, após aprovação das ideias.”

Joana Branco diz que “o livro é um espelho da multiplicidade de ideias e de formas de pensar a escrita e a ilustração, um livro sobre diversidade e inclusão que é, em si mesmo, um objecto de diversidade e inclusão”. Tudo verdade.

Bruno de Almeida vai no mesmo sentido: “O objecto final reflecte a diversidade de pessoas que foram incluídas ao longo do processo e cada parte do livro carrega uma celebração da identidade de cada um. Percebo que essa riqueza narrativa torna este livro especial, o que contribui para o enriquecimento do leitor com um objecto que fala sobre diversidade e traz no seu próprio processo de criação culturas, pessoas e perspectivas diferentes – seja pelo modo de operar ou na representação das ilustrações que incluem diferentes personagens.”

A autora do texto acrescenta ainda: “O Queer Art Lab foi uma bússola a apontar o caminho no processo. A sua missão de capacitar e empoderar a comunidade através da criação de um espaço múltiplo de experimentação é muito relevante.”

Ainda bem que já não “torce o nariz”, porque ninguém fica de fora deste livro de quatro histórias. Nem o leitor.

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