Roubar palavras durante a noite
Alguém anda a roubar as palavras que saem pelas chaminés. As preferidas são as das histórias contadas às crianças.
Um pequeno ladrão colecciona palavras que recolhe durante a noite sobre os telhados das casas. “Projectadas pelo calor dos lares, as palavras misturam-se alegremente no ar. E o pequeno ladrão apanha-as no redemoinho de fumo que sai das chaminés. As suas preferidas são as das histórias contadas às crianças. São as que sobem mais depressa e se desvanecem no silêncio da noite.”
Quando regressa a casa, uma cabana, solta-as e vê-as misturar-se, cantar e dançar. “Há umas agitadas, outras ternas, outras verdes, outras enormes e vermelhas como a raiva e algumas tão compridas que é impossível pronunciá-las.”
Depois, volta a apanhá-las e a guardá-las em frascos de bombons catalogados: palavras simples, palavras muito belas, gordas, engraçadas, solitárias, vazias, etc. E acaba a ensaiar receitas: “2 palavras doces, 1 picante, 3 molhadas e duas quentes. Mistura tudo muito bem e atira-as ao ar.” Resultado: “O acaso entrança tapetes de elogios, tece cachecóis de insultos e tricota meias de explicações complicadas.” Depois de ser mais experiente, encontrará as doses certas, que usará para criar histórias que lê aos animais da floresta.
Originais expostos em Braga
Um livro poético que emociona também pelas belas ilustrações, valorizadas pelo formato grande do livro (280 x 360 x 10 mm). Os originais podem ser vistos em Braga, na Galeria do Paço, até dia 18 de Novembro, no âmbito do encontro de ilustração Braga em Risco, organizado pelo município. Ali, crianças e adultos podem mergulhar no universo criado pela francesa Nathalie Minne. Também poderão “roubar” palavras impressas que por ali se encontram e colocá-las em frascos com etiquetas, idênticos aos da história. Uma exposição/instalação encantadora.
Numa masterclass que a autora ministrou em Braga, e a que o PÚBLICO assistiu remotamente, revelou como o seu processo criativo é dinâmico e nasce dos muitos papéis que sempre a acompanham. “Não posso trazer tudo na mala, mas ando sempre cheia de papéis”, conta à medida que os mostra, de diferentes cores, texturas, já desenhados e recortados ou não. Sobrepõe-nos e dali pode sair uma ideia.
Utiliza vários materiais e técnicas: “Para a cabana do pequeno ladrão, usei linogravura. [Para a ilustração em que aparece essa pequena casa], também recorri a papel japonês sobre um fundo preto, o que lhe dá um efeito brilhante, depois colei cada elemento, folhas e pássaros, um a um.”
Usa ainda pastel a óleo e não mistura cores. “Gosto de as justapor, mas não de as misturar. Gosto que as cores sejam puras”, disse Nathalie Minne a quem assistiu à sessão, traduzida em simultâneo para inglês por Pedro Seromenho, da organização do Braga em Risco, que nesta 6.ª edição viu crescer o seu alcance internacional.
Nascida na Normandia, estudou na Escola Superior de Artes Gráficas de Paris e trabalhou em diversas oficinas de design gráfico, onde “aprendeu a fazer letreiros, postais, cartazes e tantas outras coisas práticas”. Dedicou-se a criar histórias e a desenhá-las depois que os filhos nasceram.
Quanto ao ladrão de palavras, acabará por ser apanhado em flagrante. Há-de ganhar um amigo e depois uma paixão, que o deixará mudo. “Todas as palavras que ele tão pacientemente acumulou tornam-se inúteis.” Terá de voltar à sua recolha sobre os telhados e acrescentar um novo frasco às prateleiras. Rótulo: “Palavras de amor”.