Esta semana, a alta-costura voltou a Paris e, desta vez, em força com o regresso dos estrangeiros. Apresentadas duas vezes por ano, estas colecções das casas de moda são o pináculo da pirâmide da indústria da moda, onde os constrangimentos financeiros são postos de parte e a arte fala mais alto. Nomes como Chanel, Dior, Fendi e Schiaparelli brilharam, entre os dias 4 e 7 de Julho, na cidade das luzes.
Ainda que seja geralmente um segredo, a publicação especialista Business of Fashion estima que a maioria das peças das colecções de alta-costura rondem os 50 mil euros, com alguns vestidos mais exclusivos a chegar a um milhão de euros. Mais do que uma colecção para ser usada — algo que, por exemplo, a Dior tem procurado incorporar —, um desfile de alta-costura é um espectáculo inspirador que faz sonhar (a pensar também nas redes sociais) e prova que a moda merece o seu lugar entre as artes mais conceituadas.
A teatral Schiaparelli
Com chave de ouro (literalmente), a irreverente Schiaparelli abriu o certame parisiense na segunda-feira. No Museu das Artes Decorativas, o director criativo Daniel Roseberry apresentou “a nova alta-costura”, como lhe chamou, reinventando as fórmulas clássicas deixadas pela criadora italiana Elsa Schiaparelli (1890-1973). Como que num regresso ao passado, a primeira modelo cruzou a passerelle em lusco-fusco com uma silhueta facilmente confundível com a de Audrey Hepburn.
Os grandes chapéus, a que a marca já tem habituado o público, marcaram a proposta do criador norte-americano, na liderança da casa de alta-costura desde 2019, e surgiram em novos materiais como a juta. Não faltaram as peças escultóricas em ouro de volumes exagerados a contrastar com as silhuetas bem definidas, a acompanhar o desenho do corpo da mulher. A paleta de cores, que pouco costuma oscilar entre o preto e branco — aliás, uma das assinaturas da marca —, surpreendeu pelos detalhes coloridos a evocar o surrealismo.
Por estes dias, até Janeiro do próximo ano, o legado de Elsa Schiaparelli e a sua ligação a esta vertente artística estão em exposição no Museu das Artes Decorativas na capital francesa. São mais de 500 peças não só da casa Schiaparelli, como também de outros criadores que prestaram uma homenagem à italiana, incluindo Christian Lacroix e Yves Saint Laurent.
Dior e a árvore da vida
A directora criativa Maria Grazia Chiuri deu mais um passo na viagem à essência da alta-costura e recuperou a artesanalidade que sempre caracterizou a moda de atelier. Para o próximo Outono/ Inverno, o “New Look” transformou-se com bordados de flores. “Este é um projecto que tem por base a ideia de que a arte e os artesãos estão ao mesmo nível”, destacou Chiuri à Reuters, no rescaldo do desfile.
Mantendo algumas das formas clássicas da Dior, os coordenados neutros serviram de tela aos bordados, que surgiram não só em ombros trabalhados e nas bainhas das saias de pregas, como roubaram o protagonismo em vestidos dramáticos feitos totalmente nesta técnica. Maria Grazia Chiuri destaca um tema subjacente a toda a colecção, que considera ser um símbolo universal: a árvore da vida. A criadora olha para o símbolo como sendo algo a que as pessoas recorrem “em tempos difíceis”.
À semelhança da última estação, a passerelle ocupou uma estrutura temporária nos jardins do Museu Rodin. Desta vez, a sala foi adornada com o trabalho da artista ucraniana Olesia Trofymenko, que combinava imagens de ornamentos tradicionais da Ucrânia com bordados florais, materializando-se em formas de rostos humanos. A exposição fica patente, tal como em edições anteriores, durante toda a semana de alta-costura.
A festa de Giambattista Valli
O italiano Giambattista Valli apostou todas as fichas na celebração de uma década na semana de alta-costura de Paris, num extravagante desfile que encerrou o primeiro dia do certame. Tules e caudas dramáticas, parte da assinatura do criador, marcaram a proposta apresentada perante uma plateia de fãs da marca.
Foi mesmo uma autêntica festa com as modelos a surgirem através de uma parede coberta em balões — onde os flamingos cor-de-rosa rivalizavam com os unicórnios, tal e qual como num aniversário infantil. Esta dimensão foi também transportada para os vistosos óculos de sol e as arrojadas extensões de cabelo. Os coordenados também foram pensados para celebrar com Valli a usar, sem pudores, os cristais.
As silhuetas variaram entre os justos ao corpo e os volumes esvoaçantes. Nas criações femininas, destacaram-se as mangas divertidas, ora com laços, ora cobertas com penas. “[Esta colecção] é como a generosidade de um abraço. É um abraço de flores, um abraço de penas, um abraço de tule. É este um prazer partilhar momentos felizes juntos”, destacou Valli, em declarações à Reuters. Mais do que tudo, sublinha, desta vez, quis celebrar o momento: “Não olho muito para o futuro, nem para o passado. Acho que esta é a lição dos últimos anos”.
Os anos 30 da Chanel
A directora criativa da Chanel, Virginie Viard, voltou a surpreender, na terça-feira, com a segunda parte de uma nova abordagem à alta-costura iniciada na estação passada. Desta vez, o desfile — sempre um dos mais esperados — rumou a um picadeiro nos arredores de Paris, num cenário criado novamente pelo artista contemporâneo Xavier Veilhan, num jogo de formas geométricas, onde as esferas suspensas do tecto rivalizaram atenções com a colecção inspirada nos anos 30 do século XX.
Virginie Viard não nega o legado da Chanel e os fatos em tweed são, como é costume, uma constante na proposta. Celebrizados pela fundadora Gabrielle Chanel, conhecida como Coco Chanel, e recuperados por Karl Lagerfeld, são uma imagem que até os menos entendidos em moda identificam como sendo desta casa francesa. Para o próximo Outono/Inverno surgem em cortes mais relaxados e em cores surpreendentes, como o verde lima.
Longe vai o tempo do sucesso da mini-saia, com a Chanel a recuperar formatos maxi, não só em cortes mais clássicos em tweed, como em modelos de pregas. A noiva — que tipicamente encerrava os desfiles de alta-costura — desfila num modelo até ao tornozelo, estilo princesa, complementado com uma capa, estilo xaile. “Acho que é muito importante que a Virginie sinta total liberdade para ir onde quer que ache que devemos ir com a Chanel”, elogiou o presidente de moda da Chanel, Bruno Pavlovsky, em declarações à Vogue britânica.
Armani e o brilho da passadeira vermelha
Com a elegância que o caracteriza, o italiano Giorgio Armani trouxe brilho a Paris. O criador das estrelas de Hollywood arrojou nos vestidos pretos em tule e nos volumes, a contrastar com os cortes mais sensuais e os acetinados. A textura surpreende também nas calças estilo Bollywood, em cores pouco comuns na assinatura de Armani, como o lilás. Já os cristais e as lantejoulas deram vida a inventivos casacos com detalhes florais — aliás, uma constante de toda a proposta.
A pensar nas passadeiras vermelhas e nas várias estrelas de Hollywood que costuma vestir, não faltaram os vestidos de noite nos clássicos “com preto nunca me comprometo” e azul, mas também num divertido “cor-de-rosa Barbie”. No fim do desfile, a custo, Giorgio Armani, de 87 anos, emergiu da escuridão para a tradicional vénia de agradecimento.
As estrelas da Balenciaga
Demna Gvasali não se cansa de surpreender e arrojar na Balenciaga. Nesta estação, apenas a segunda vez que a marca apresenta na semana de alta-costura, esta quarta-feira, trouxe um desfile recheado de estrelas onde reinventou algumas das assinaturas da quase centenária casa de moda fundada em 1927 por Cristobal Balenciaga no País Basco. O criador georgiano também não quer ficar preso ao passado e ambiciona o que está para vir, garantiu à revista Vogue no final da apresentação: “Este ano decidi que me precisava de colocar mais numa espécie de procura de um novo futuro.”
Para apresentar esse futuro com inspiração no passado da casa de moda chamou algumas das mulheres amigas da marca que cruzaram também a passerelle: a cantora Dua Lipa, a actriz Nicole Kidman, a socialite Kim Kardashian e a supermodelo Naomi Campbell. O desfile começou com a viagem ao futuro e caminhou em direcção ao passado. Os primeiros modelos surgiram com os rostos cobertos com máscaras e fatos justos ao corpo estilo látex.
Lentamente apareceram os primeiros coordenados de festa repletos de brilho — como pedem as colecções de alta-costura. No altifalante soava um poema em francês que Demna Gvasali terá escrito para o marido. “Je t’aime [eu amo-te] é a expressão mais bonita da língua para mim. E percebi que a alta-costura, o que eu faço, é a única coisa que amo fazer e que quero estar a fazer. Era uma carta de amor para a pessoa que mais amo na vida, e para o trabalho, a arte que faço. Para ambos”, explicou.
O drama das criações de Cristobal Balenciaga foi recuperado na segunda metade do desfile, durante a qual foram revelados os rostos dos modelos. Directamente da época vitoriana voltaram as crinolinas combinadas com os acetinados em criações paradoxalmente excêntricas e elegantes.
Jean-Paul Gaultier por Olivier Rousteing
O criador francês Olivier Rousteing tem dado cartas como um dos directores criativos mais consensuais do sector, há mais de uma década a liderar os destinos da Balmain. Fora da zona de conforto, surpreendeu com uma nova abordagem à Jean-Paul Gaultier, onde a cada estação um designer diferente assina a colecção de alta-costura, depois de o próprio Gaultier se ter despedido das passerelles em 2020.
A apresentação causou um aparato tal que as ruas foram fechadas ao longo de vários quarteirões por seguranças para a chegada dos convidados. Kim Kardashian e a filha North West estiveram sob os holofotes com a socialite a chegar numa recriação de um vestido usado por Madonna em 1992 — quando a cantora apareceu com o peito nu. A criação foi uma das apostas da proposta de Rousteing, que deu uma nova visão a alguns dos clássicos da marca, como a alfaiataria estruturada ou o soutien cónico.
O conhecido frasco de perfume de Gaultier materializou-se em vários coordenados e o criador francês recuperou outros conjuntos da colecção de Primavera 1994, sem esquecer os corpetes. Mas Olivier Rousteing não se limitou a mimetizar o legado de Jean-Paul Gaultier: duas modelos desfilaram lado a lado com um soutien cónico e uma barriga de grávida para simbolizar a fertilização in vitro que passou a ser permitida para lésbicas em França no ano passado.
Is this a reference to that iconic moment when Jourdan Dunn walked pregnant for Jean Paul Gaultier SS10? pic.twitter.com/opKngOMqET
— Mila (@ARTFASHIONTHING) July 6, 2022
As jóias da Fendi
O desfile da italiana Fendi ficou reservado como o destaque do último dia da semana da alta-costura, esta quinta-feira. Na terceira colecção assinada pelo director criativo Kim Jones — também responsável pela linha masculina da Dior —, as jóias competiram com a roupa pelo protagonismo. Trata-se da primeira linha de alta joalharia da casa romana desenhada por Delfina Delettrez Fendi, directora criativa de jóias da marca e descendente dos fundadores Adele e Edoardo Fendi.
No primeiro coordenado — um clássico fato camel —, destacou-se o colar com mais de mil diamantes brancos e alguns amarelos a formar discretamente os dois “F”, monograma da Fendi. “Queria usar o logótipo de forma subtil, quase um código escondido”, explicou a designer, em declarações à revista WWD. “Para mim os ‘F’ são quase o brasão da minha família”. O amarelo, acrescentou, representa a tonalidade do pôr-do-sol de Roma, onde a casa de moda foi fundada em 1925. O conjunto, composto pelo colar e dois brincos de diamantes amarelos, estará à venda entre 350 mil e 1,2 milhões de euros.
O “brasão” de que falava Delfina Delettrez Fendi foi desenhado por Karl Lagerfeld em 1956, quando começou a colaborar com a marca. Inicialmente, o monograma era usado apenas em algumas peças em pele, até ter sido alargado à extensão da colecção. Desta vez, Kim Jones não abusou do símbolo e apostou numa colecção romântica, onde o lado mais clássico da moda italiana foi equilibrada com as transparências e os brilhos dos vestidos de noite. Também não faltaram os bordados em flores — aliás, uma tendência presente transversalmente nas colecções de alta-costura para o próximo Outono/ Inverno.