Covid-19: “Não podemos nem devemos proteger as crianças das dificuldades da vida”
A espanhola Begoña Ibarrola já escreveu mais de 200 livros, sobretudo para crianças. Agora, tem quatro contos para ajudar a falar, a compreender e a viver a pandemia. Os miúdos mais resilientes serão aqueles que melhor superarão esta fase, acredita.
Lucas tem medo que os pais, ambos enfermeiros, sejam infectados no hospital. Valentina está triste por não poder festejar o aniversário com os amigos. Sara quer voltar à escola e ver as amigas, mas o irmão Victor não tem a mesma vontade. Fábio tem medo de sair de casa, mas Cati vai descobrir que a alegria é mais contagiosa do que qualquer vírus. São quatro histórias cujo objectivo é ensinar, da melhor forma, as crianças a gerirem as suas emoções, ultrapassarem medos e voltarem às rotinas possíveis.
A psicóloga espanhola Begoña Ibarrola, terapeuta e especialista em inteligência emocional e uma das autoras mais lidas pelas crianças do seu país, escreveu Contos para uma Nova Realidade, publicado pela Texto Editora, a pensar nos mais novos, nos seus pais e professores. São quatro contos que reflectem situações que não são exclusivas da vivência dos miúdos espanhóis.
“Durante estes meses muitos pais e professores pediram-me ajuda e conselho porque não sabiam bem como abordar com as crianças os seus medos, ansiedades e stress... Um conto ajuda, sobretudo em situações difíceis pois é um recurso fabuloso para gerir emoções”, explica a autora ao PÚBLICO, numa entrevista feita por e-mail. As ilustrações são de Marisa Morea. “Espero que estes contos cheguem às mãos de muitos leitores, que toquem muitos corações e os ajudem a superar melhor esta situação que fomos obrigados a viver”, deseja a autora.
Como devem os pais ou os professores ler estas histórias?
O livro tem quatro contos e os pais podem começar pelo que mais se adequa ao seu filho. Por exemplo, se a criança tem medo do contágio, se tem medo de regressar à escola, se está triste porque não pode ver os seus amigos... No caso dos professores, podem começar pela história do regresso à escola porque tem sugestões práticas de como acolher emocionalmente o aluno — que é a primeira coisa que devem fazer antes de começar a dar matéria. Depois da leitura, o convite é para que se comente o que se ouviu, perguntando à criança, por exemplo, o que faria se fosse ela a personagem principal, ou pedindo-lhe que continue a história. É importante que durante a leitura, o adulto esteja atento à criança, de maneira a descobrir que emoções lhe provoca a história ouvida.
Que medos têm as crianças?
Muitos e diferentes. O medo é uma emoção universal muitíssimo normal e que se aplica a esta situação que estamos a viver. No entanto, depende do temperamento de cada um, podendo ter maior ou menor intensidade. Casa pessoa tem uma maior ou menor capacidade de regulação do medo. Uma boa educação emocional permite gerir melhor as emoções. Porém, muitas crianças não aprendem a fazê-lo. No caso da pandemia, os principais medos dos mais novos são o contágio; a morte — tanto a sua como a de um ente querido —; e a incerteza — pois não sabem quando vai terminar e isto gera muita ansiedade e frustração. Definitivamente, o regresso à escola pode fazer aumentar os medos que a criança já tinha e fazer surgir novos, que estão directamente relacionados com este momento.
Uma vez que estamos quase desde o início do ano a lidar com a pandemia, é possível dizer que as crianças já se adaptaram a esta situação?
O tempo ajuda-nos a habituarmo-nos a determinados comportamentos — como lavar as mãos, colocar máscara, etc. —, e as crianças adaptam-se, ainda melhor do que os adultos, a muitas situações novas. Mas isso não significa que as emoções desapareçam e se sintam calmas e seguras. Uma coisa é gerar novos hábitos e outra é aceitá-los como normais.
É mais fácil para os mais novos normalizarem o uso da máscara?
Talvez usem melhor a máscara do que consigam cumprir distância dos amigos. Mesmo assim não é algo confortável, embora nos acostumemos, claro. Mas, daí a ser normal, acho que não, porque eles sabem o motivo por que as usamos e também sabem que um dia a pandemia vai acabar. As lembranças do que viveram ficarão para sempre na sua memória.
O que estão as crianças a perder da sua infância por causa desta pandemia?
Esta pandemia ajuda-nos a fazer mudanças nas nossas vidas e nas das crianças. Nos seus casos, talvez tenham tido de assumir coisas e situações que não foram planeadas, tiveram de aceitar a frustração, enfrentar os seus medos, etc.. Tudo isso pode ajudá-las a amadurecer, a serem mais autónomas e isso não significa a perda da infância, mas sim o vivê-la com coisas doces e amargas. É por isso que as crianças, que antes só viveram o lado bom da vida, são as que mais sofrem. Este é um momento de ajudar os filhos a desenvolver a resiliência para que possam usufruir da sua infância aceitando que não é possível controlar tudo na vida, que esta é imprevisível e que, mesmo assim, podem viver com entusiasmo.
Esta pandemia e o confinamento também contribuíram para revelar relações familiares menos positivas?
Em situações extremas, o ser humano traz à tona o que há de melhor e de pior em si. Os relacionamentos podem ser fortalecidos ou dissolvidos, tudo depende do clima emocional do lar. Mas não há dúvida de que esta situação testou muitos pais, a força da sua união, a sua própria capacidade de lidar com situações de stress e os seus valores.
Este ano, o Natal pode ser diferente. Como explicá-lo às crianças?
É preciso explicar-lhes as coisas com clareza e sem dar informações que possam não entender. Assim como foi dito às crianças o que era o coronavírus, numa história simples e compreensível, da mesma forma pode-se explicar-lhes que não podem ir ver os avós ou que a família não se pode juntar fisicamente. Cabe aos pais e à sua criatividade inventar uma festa diferente, assim como nós inventamos novas formas de nos cumprimentar ou de demonstrar afecto pelos amigos.
É possível que os mais novos, com esta situação da pandemia, possam sofrer de stress pós-traumático?
Algumas crianças sim, mas isso estará relacionado com o nível de recursos psicológicos que possuem e o estilo parental que receberam. Crianças superprotegidas sofrerão mais porque não têm força suficiente para enfrentar as dificuldades e isso é treinado desde cedo. Todos sofreram o impacto psicológico, é inevitável, mas para alguns pode ter sido uma experiência traumática devido a algumas situações que viveram, como, por exemplo, a morte de um ente querido ou os pais separaram-se...
Gostaria de acrescentar algo?
Não podemos nem devemos proteger as crianças das dificuldades da vida, mas é preciso dar-lhes ferramentas que as ajudem a enfrentá-las. A vida é incerta, impermanente e incontrolável. Assumindo isso, podemos aproveitá-la e aprender com tudo o que nos acontece. Tudo depende da educação que as crianças recebem. É hora de aumentar o bem-estar emocional de todos, desenvolvendo confiança e empatia. Com estas duas capacidades, as crianças poderão sentir-se fortes perante os desafios que a vida lhes coloca, confiando nos seus recursos internos.