Carta aberta ao primeiro-ministro, que não se pode esquecer de que Portugal é um Estado social e de direito

Aquilo que o seu Governo está a fazer é uma verdadeira mudança de paradigma: aproximar-nos de um outro modelo de funcionamento do Estado, testado em outras geografias e com resultados desastrosos.

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O primeiro-ministro, Luís Montenegro MIGUEL A. LOPES / LUSA
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Exmo. senhor primeiro-ministro,

Senhor dr. Luís Montenegro,

Não lhe escreveríamos, na antecâmara deste Natal de 2024, se não achássemos urgente alertá-lo para a circunstância intolerável de, 50 anos depois do Abril que nos trouxe o Estado social e de direito, o Governo a que V. Exa. preside ter dado esta semana sinais inequívocos de não compreender o sentido profundo de “Estado social” nem de “Estado de direito”, atingindo no coração e no osso o projeto social do povo português inscrito na Constituição desde a conquista da democracia.

Há um momento simbólico em que o ataque deste Governo ao Estado social e de direito é exposto ao sol em toda a sua crueza, esse momento que uma imagem inscreveu na nossa memória coletiva, o retrato das pessoas perfiladas pelo Estado contra a parede enquanto no Parlamento de Portugal se debatia e aprovava, com os votos da Aliança Democrática e do Chega, a primeira exceção à universalidade do direito fundamental à saúde. A imagem para a qual tantos olhámos, incrédulos (“o que é isto?”), interrogando-nos sobre a sua fidedignidade (“não é verdade, pois não?”), ao mesmo tempo em que na Assembleia da República, por proposta do Governo, se restringia o direito de acesso de imigrantes “sem documentos” ao Serviço Nacional de Saúde. Em muitos casos, trata-se de imigrantes que trabalham em Portugal e que descontam para a nossa Segurança Social, mas a que o Governo decidiu dificultar a regularização, acabando com o mecanismo da “manifestação de interesse” sem o ter substituído por outra solução que combata a clandestinidade dos imigrantes e a sua assim mais provável exploração pelos vampiros da vulnerabilidade. Quando se dificulta a regularização a quem a merece, facilita-se a vida às máfias que vivem do medo sentido pelos cidadãos indocumentados. Decidir, de seguida, que sem essa regularização também se lhes fecha a porta do SNS é de uma desumanidade inaudita.

O senhor primeiro-ministro já achava que as polícias podiam ser utilizadas para “dar visibilidade” a opções de política criminal de law and order fracassadas em tantos outros lugares e não se coibiu de expor chefias das forças e serviços de segurança, até fardadas, numa comunicação ao país à hora da abertura dos telejornais mesmo sem ter nada de novo e relevante para anunciar. Mas agora também parece achar que pode “dar visibilidade” às pessoas expostas na rua, as pessoas perfiladas por dezenas de polícias contra a parede, numa ação que nos faz lembrar tempos que julgávamos enterrados, pessoas encostadas à parede em função de um critério que é o da sua origem, o da diversidade da sua cultura ou o da cor da sua pele (porque ninguém acredita que em outros locais do país não existam ocorrências criminais merecedoras da atenção do Estado e cuja prevenção e repressão ocorra com mais respeito pela privacidade). Sobre esta inaceitável exposição de pessoas, já teve necessidade o senhor Presidente da República de o vir recordar, senhor primeiro-ministro, de um certo dever de “recato”. Talvez preferíssemos outra formulação: a forma como aquelas pessoas foram tratadas consubstancia inequivocamente um tratamento degradante, proibido pela nossa Constituição no número 2 do seu artigo 25.º (“ninguém pode ser submetido a (…) tratos (…) degradantes ou desumanos”).

Apesar de ser novo no Portugal democrático, não é novo aquilo que o senhor primeiro-ministro está a começar a fazer. Em outros países, a desistência do Estado social (da universalidade do acesso à saúde ou à educação, só para dar alguns exemplos) foi sendo compensada pelo fortalecimento do Estado punitivo. Um Estado que aparenta ser robusto, que exibe o seu poder expondo nas ruas as fardas e as armas que simbolizam a autoridade de forma despropositada e que cria inimigos imaginários para convencer os seus cidadãos de que estão tão inseguros que precisam mesmo de um governo forte. Governos que criam perceções de insegurança para depois as usarem achando que é com elas que encherão de votos as urnas. Sem quererem saber de danos colaterais.

Senhor primeiro-ministro, queremos recordar-lhe que ações policiais desproporcionais violam a lei do nosso país. E que é difícil persuadir seja quem for da proporcionalidade de uma operação especial de prevenção criminal ao abrigo da Lei das Armas, envolvendo dezenas de agentes das forças de segurança, revistando de modo desnecessário e degradante dezenas de imigrantes a alguma distância de jornalistas convocados para “dar visibilidade” à operação quando os resultados se cingem a pouco mais do que a detenção de dois cidadãos portugueses e à apreensão de uma arma branca. O artigo 272.º, n.º 2 da Constituição é inequívoco na sua proibição do excesso: as "medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário".

Os subscritores desta carta respeitam o trabalho abnegado de todos os agentes das forças e serviços de segurança que norteiam a sua conduta pela legalidade e se expõem a riscos para proteger a paz da nossa vida coletiva e defender os nossos direitos individuais. É por os respeitarmos que nos repugna que sejam usados como alfinetes na lapela por titulares de cargos políticos em exibições de autoritarismo. E é também para a sua proteção que repudiamos a opção por um modelo político-criminal caduco que fomenta o racismo e que cria inimigos, porque divide a sociedade e exclui, através da revolta ou do desespero.

A larguíssima maioria dos crimes tem na base problemas sociais a que o Estado não deu resposta. É por isso que os países que desistiram do Estado social têm índices de criminalidade e de violência tão superiores. Todos temos de compreender o papel inestimável do acesso à saúde ou à educação na prevenção da violência e da criminalidade. A aposta que como povo neles fizemos tem sido um dos fatores preponderantes para nos termos tornado um dos países mais seguros do mundo.

Senhor primeiro-ministro, aquilo que o seu Governo está a fazer é uma verdadeira mudança de paradigma. Está gradualmente a deixar cair as conquistas do Estado social que nos vêm garantindo a segurança em sentido amplo de que nos orgulhamos como povo e como sociedade digna. Está a aproximar-nos de um outro modelo de funcionamento do Estado, testado em outras geografias e com resultados desastrosos de mais desigualdade, mais exclusão social, mais violência. Não o toleraremos e não nos calaremos. Apelamos-lhe a que não vá por aí. É preciso que se interiorize de uma vez por todas que policiamento de proximidade não significa proximidade com bastões nem rostos de imigrantes próximos da parede.

O senhor primeiro-ministro está vinculado pelo dever de cumprir o nosso projeto como povo que foi inscrito na Constituição. O projeto de um Estado social, de direito e democrático. Apelamos-lhe a que o faça.

Ana Catarina Mendes – Eurodeputada eleita pelo Partido Socialista

Cláudia Santos – Deputada e professora universitária

Alexandra Leitão – Presidente do grupo parlamentar do Partido Socialista e professora universitária

António Topa Gomes – Professor universitário e ex-deputado

Augusto Santos Silva – Professor universitário e ex-presidente da Assembleia da República

Catarina Martins – Eurodeputada eleita pelo Bloco de Esquerda

Constança Urbano de Sousa – Professora universitária e ex-ministra da Administração Interna

Dino d’Santiago – Músico, compositor e ativista

Fabian Figueiredo – Presidente do grupo parlamentar do Bloco de Esquerda

Inês Sousa Real – Deputada e porta-voz do PAN

Isabel Mendes Lopes – Presidente do grupo parlamentar do Livre

Isabel Oneto – Deputada e ex-secretária de Estado da Administração Interna

João Miranda – Professor universitário e advogado

Joaquim Sousa Ribeiro – Professor universitário e ex-presidente do Tribunal Constitucional

Jorge Reis Novais – Professor universitário

José Leitão – Advogado e ex-alto-comissário para as Migrações e Minorias Étnicas

Manuel Loff – Historiador e professor universitário

Maria João Antunes – Professora universitária e ex-juíza do Tribunal Constitucional

Maria de Lurdes Rodrigues – Professora universitária e ex-ministra da Educação

Rui Pena Pires – Professor universitário e coordenador científico do Observatório da Emigração

Rui Tavares – Deputado e dirigente do Livre

​Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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