A história de Rute Bianca, uma das primeiras a fazer a cirurgia de redesignação de sexo, entrelaça-se com a de outras pessoas trans para revelar a mudança das últimas décadas
A homossexualidade só não é crime em Portugal há 40 anos.
Neste especial multimédia, resgatamos memórias de pioneiros do movimento LGBT+. Atendemos às particularidades do que tem sido a luta trans. Procuramos saber que desafios enfrentam agora os mais velhos. E que lutas animam os mais jovens. Alinhamos uma cronologia do movimento LGBT+ com imagens de época.
Quando Rute Bianca (n.1959) se submeteu a uma cirurgia de redesignação sexual, em Portugal tal nem era concebível. Pouquíssimos médicos no mundo inteiro tinham perícia e vontade para fazer o que tantas pessoas trans desejavam. E esses atraíam gente de todo o lado.
Um ginecologista francês chamado Georges Burou (1910-1989) abrira uma clínica nos arredores de Casablanca, capital económica de Marrocos. E fora lá que, entre 1956 e 1958, desenvolvera uma técnica inovadora, partindo da ablação do pénis para criar uma vagina.
Rute viajou sem visto. Barrada no aeroporto, desfez-se em desculpas. Não sabia que era preciso, ia só fazer uma cirurgia. Na espera pela permissão, um guarda perguntou-lhe pelo dinheiro. “Eu levava o dinheiro escondido numa cinta elástica. Ia com uma grande bunda. Levava notas de vários países.” Há 40 anos, uma intervenção cirúrgica destas custava mil contos (5 mil euros).
Também não levava morada. As amigas tinham-lhe dito: “Os taxistas olham para ti, já sabem que vais para a clínica.” Caminhou até à praça de táxis. “Andei a olhar para os taxistas todos a ver se alguém me dizia: ‘Clinique du Parc?’” Questionou-os um a um e nada. Até que, já noite, apareceu um homem que sabia lá chegar e se dispôs a acompanhá-la.
Sofreu uma paragem cardíaca no bloco. O médico recomendou-lhe que voltasse a casa, que se tratasse. “Eu disse: ‘Não, senhor doutor. Desculpe, mas eu não saio. Daqui saio mulher ou morta.’” Insistiu. “Sei lá se vou ter oportunidade de voltar! Daqui saio mulher ou morta.”
Lembra-se da data exacta da cirurgia porque a encara como um renascimento: 23 de Novembro de 1983. Quando se viu ao espelho, Jesus, Maria, José. “Chorei tanto, tanto de alegria. Era o culminar de uma luta. Era o realizar de um sonho. Foi sempre assim que eu me vi desde que tive consciência de mim. Agora sou uma mulher igual a todas.”
Katy Wandolly, Wanda Morelly e o transformismo
A exclusão principiou cedo. Os rapazes viam-lhe os trejeitos e puxavam-na para “brincadeiras sexuais”. Ia nos 14 anos, três levaram-na para um descampado. “Tentaram fazer-me mal. Eu não deixei. Fizeram queixa de mim. Disseram que me tinha atirado a eles.”
Virou-se a escola, no Porto, contra si. “Fui chamada ao director. Fui expulsa da escola. Levaram-me ao psiquiatra. O psiquiatra disse: ‘Aí, dá-se umas injeções de testosterona e o rapaz fica bem. Isso são coisas da juventude’. Eu disse: ‘Não, senhor doutor, eu não vou ficar bem, porque eu não quero ser um homem, eu quero ser uma mulher.’ ‘Então vais preso!’”
Era grande a confusão entre orientação sexual e identidade de género. Explica a sexóloga Zélia Figueiredo (n. 1955) que já havia o termo transexual, introduzido pelo sexólogo alemão Henry Benjamin (1885-1986). Em qualquer caso, os médicos encaravam a condição de Rute como uma doença, uma perturbação. Ninguém falava em disforia de género, o sofrimento provocado pela não conformidade entre sexo biológico e identidade de género.
Matriculou-se noutra escola, em Gaia. “Agora, fala-se de bullying. Antigamente, insultavam-nos, chamavam-nos nomes, riam-se. E eu não me sentia bem. Tinha de me vir embora.” Matriculou-se noutra escola, em Gondomar. Bullying. Tornou a matricular-se numa escola, no Porto. Bullying. “Fui expulsa de quatro escolas onde tentei estudar para poder ser alguém.”
Teria 16 ou 17 anos quando, a caminho de um baile, conheceu Katy Wandolly, nome artístico de Kelly Silva (n. 1957), então também com a aparência de um rapaz afeminado. Os seus olhares cruzaram-se. Reconheceram-se uma na outra. Ela introduziu-a num mundo novo, alternativo, frequentado por homossexuais e simpatizantes. “Senti-me bem. Tanta gente igual a mim!”
No Porto, Katy foi uma das pioneiras do que então se chamava “show travesti”. Rendera-se a Guida Scarllaty, personagem de Carlos Ferreira, que em 1975 experimentou este tipo de arte no Teatro Declamado e se tornou uma estrela no Parque Mayer.
Katy estreou-se em 1976, no Cine-Teatro Ódeon, com outras cinco pessoas. Conta ela que fizeram uma pequena tournée que passou por Macedo de Cavaleiros e terminou nos Bombeiros Voluntários do Porto. A partir daí, abriram-se-lhe portas em várias boîtes da área metropolitana.
Rute adorava vê-la imitar fadistas como Cidália Moreira ou Fernanda Baptista. Trabalhava como paquete de um escritório de dia, tentava estudar à noite e, ao fim-de-semana, vestindo figurinos feitos por uma amiga costureira, a Bia, pôs-se a imitar Madalena Iglesias, Tonicha e Natércia Barreto.
Antes do 25 de Abril de 1974, escreveu o investigador Nelson Alves Ramalho (2020), havia a palavra transvestido, que evoluiu para travestido, travesti, alusão a homossexuais que se vestiam de mulheres, em casas particulares ou clandestinas. Depois, embora a homossexualidade permanecesse criminalizada, houve alguma soltura. Alguns refinaram a arte. Perante o interesse do público, casas de diversão nocturna investiram naquele tipo de espectáculo. O termo travesti ganhou nova “conotação, a de travesti-actor, usada para designar homens que, por algumas horas, personificavam celebridades femininas”.
“A palavra transformista surgiu para fazer a diferença entre travestis de rua e travestis de espectáculo”, corrobora Alberto Teixeira (n. 1958), que começou a pisar os palcos como Wanda Morelly em 1977, inspirado pelo que vira numa viagem a Barcelona. Era toda uma arte ocultar expressões do próprio género, criar a ilusão de ser de outro género. “Era mágico.”
Não se lembra de alguma vez ter sido importunado pelas autoridades. “Eram mais atacados aqueles que estavam num caminho de transsexualidade porque saíam à rua já vestidos de mulheres. Esses, sim, muitas vezes eram corridos pela polícia, quando não eram levados para a esquadra e presentes aos juízes.” Não era só a transgressão de género. “Sabiam que o caminho da transexualidade feminina era a prostituição.” E essa também era crime.
Rute e as amigas arriscavam, apesar da proibição. “Os da Polícia de Segurança Pública não gostavam de nós. Esses levavam-nos para a esquadra e obrigavam-nos a ficar lá horas e horas. Chamavam-nos nomes. E obrigavam-nos a fazer desfiles. ‘Ai queres ser mulher? Então anda lá. Caminha como uma mulher. Fala como uma mulher.’ Riam-se da nossa cara.”
Os estilhaços do preconceito atingiram até a família. “Os vizinhos faziam pouco dos meus pais por terem o filho que eu era. Chamavam-me nomes feios. O meu pai perdeu os amigos. Fugiam dele, porque tinham vergonha, tinham medo que a doença do filho dele pegasse aos filhos deles. A minha mãe perdeu as amigas. As pessoas fugiam todas de nós.”
Modificar o corpo com silicone caseiro e animar cabarés
Sabendo que havia formas de modificar o corpo com hormonas, silicone, cirurgias, em 1978 Katy avançou para França. “Quando ela veio pela primeira vez, já com peito, toda feminina, fiquei toda maluca”, diz Rute. Falou com os pais, meteu umas peças numa mala e partiu.
Katy avisara-a de que não havia emprego. "Fui para aqueles cabarés de meio tostão. Fazia espectáculo, bebia umas garrafas de champanhe com uns senhores que queriam companhia."
Primeiro, aumentou as maçãs do rosto. Ia com a amiga Bia a casa de uma “bombadeira”, uma mulher que injectava silicone com uma agulha. Depois, fez uma cirurgia de aumento mamário. “Quando me vi com as minhas mamas, ai meu Deus, senti-me tão feliz! Ainda tinha aquela coisa no meio das pernas, mas aquilo ia desaparecer.” Alterou o nariz. “Só faltava a anca. E fomos ‘bombar’.”
Ainda não havia Acordo de Schengen. Portugal nem fazia parte da Comunidade Económica Europeia, actual União Europeia. De três em três meses, Rute e Bia tinham de sair de França. Aproveitavam para vir ao Porto fazer uma temporada. “Fomos artistas exclusivas de uma casa muito famosa que havia em frente ao Majestic, o Colibri.”
Já não se ficavam pelo playback. “Tínhamos números com muita sensualidade. Eu era abusada. Comecei a fazer striptease. Eu queria mostrar o meu corpo. Como ainda tinha pila, aprendi um truque. Puxava para trás. Colava entre as nádegas e pintava com tinta para calçado.”
Em 1982, estava a Assembleia da República a discutir a revisão do Código Penal que haveria de descriminalizar a homossexualidade, e Rute a trabalhar num peep show, ali perto, em Lisboa. Tradução: “Fazia o striptease dentro daquelas cabines que se metem moedinhas.” Com plumas, disfarçava a genitália. Um espanhol que protagonizava espectáculos de sexo ao vivo convidou-a a juntar-se a ele e a uma mulher bissexual. “As pessoas estavam sempre à espera que a rapariga me tirasse o biquíni. Era um sururu muito grande.”
Cumpriu uma temporada de striptease em Espanha. “Trabalhava num teatro que me abria as portas todas. Trabalhava no Barcelona de Noche. Entrava em todas os restaurantes, em todas as festas, em todos os sítios. Agora estou mais velha, mais cansada, fujo mais das pessoas, mas antigamente eu gostava de toda a gente e dava tudo a toda a gente.”
Ganhava muito dinheiro, mas também o gastava. Os pais emprestaram-lhe o que lhe faltava quando, já trabalhando na Suíça, viajou até Marrocos para a cirurgia de redesignação de sexo. “Morria-se muito na mesa de operações. O meu pai e a minha mãe choraram. O meu pai disse: ‘E se acontece alguma coisa?’ Eu disse: ‘Não importa.’”
A cirurgia que tanta alegria lhe deu não a livrou do olhar alheio. Numa ocasião, foi apanhada numa rusga, no Macau, em Matosinhos. “Eu não tinha bilhete de identidade. Levaram-me para a esquadra. Eu disse: ‘Eu sou uma senhora. Eu tenho um nome de homem, mas eu operei-me toda no estrangeiro e tenho uma vagina.’” O polícia riu-se. “Mostra lá essa merda.” Rute obedeceu. “Realmente pareces uma mulher, mas nunca vais deixar de ser um homem.”
Aquela e outras formas de humilhação mostravam-lhe a necessidade de fazer alguma coisa para mudar mentalidades. Já em Portugal, a partir de 1992, começou a aceitar participar em programas de televisão. “Eu queria mostrar às pessoas que nós, os transexuais, também somos gente. Sofremos, choramos, rimos, comemos, bebemos, dormimos, como toda a gente. Então porque têm de fazer pouco de nós? Porque é que têm de nos desmerecer? Não! Nós temos tanto valor como vós. Nós somos seres humanos que lutam para serem felizes.”
Nuno L
Processar o Estado para mudar de nome
Nuno L. (n. 1980) viu Rute no pequeno ecrã com um homem trans chamado Miguel Maria de Jesus (n. 1971). Andava numa angústia desde o início da puberdade. “Sabia que havia pessoas que se travestiam para actuar na noite ou para se prostituírem, mas não sabia que se podia fazer o processo completo de transição. Nem eu nem os profissionais que tinha apanhado!”
A mãe já o levara a uma consulta no Hospital Magalhães Lemos, no Porto. “Saí de lá com a indicação de que tinha demasiada testosterona. Para contrariar, seria melhor tomar a pílula." Chegou a mutilar-se. Dava socos no peito. Ajudou ver o filme Boys Don't Cry (1999), do Kimberly Peirce. Aprendeu a usar elásticos para comprimir o peito.
A produção do programa não lhe dispensou qualquer contacto. E não havia redes sociais, janelas para pessoas desconhecidas. Num dia, estava a conduzir na Rotunda da Boavista e viu Rute. A namorada, sentada ao lado, saiu disparada, atrás dela. “Ela assustou-se, mas depressa percebeu que era um pedido de ajuda.”
As cirurgias de redesignação de sexo estavam previstas na lei desde 1984. Durante anos, a Ordem dos Médicos proibira-as, alegando não ser ético intervir em “corpos biologicamente saudáveis”. Até que, com a evolução da compreensão do fenómeno, mudou de ideias. “É proibida a cirurgia para reatribuição de sexo em pessoas morfologicamente normais, salvo nos casos clínicos adequadamente diagnosticados como transexualismo ou disforia de género”, lê-se numa resolução aprovada em Maio de 1995.
Um médico chamado Godinho de Matos começara tais intervenções no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, em 1997. Servindo-se do número que Rute lhe dera, Nuno telefonou para o seu consultório. Tinha de começar no serviço de psiquiatria do Hospital Universitário de Coimbra. De lá, para o Hospital Júlio de Matos. E de lá para o Santa Maria.
Teve a primeira consulta em 2001. A terapia hormonal ajudou a aumentar a massa muscular, a engrossar da voz, a aumentar a pilosidade, a diminuir o tecido adiposo na região das ancas. E suprimiu a menstruação, provocou hipertrofia do clitóris e atrofia mamária. Adiantou a mastectomia bilateral (remoção de seios) e a histerectomia (remoção de útero) no sector privado. Em 2004, estava a sujeitar-se à metoidoplastia (soltar o clítoris para uma posição semelhante à de um pénis).
Só a seguir veio a mudança de nome. “Foi terrível. Não tinha trabalho por causa disso.” Já acabara o curso de Educação Física, mas a aparência masculina não combinava com o nome feminino. Ainda substituíra uma amiga dando aulas a doentes internados num hospital privado. Chegado o momento de transferir a prestação de serviços para o seu nome, o director deparara-se com a discrepância entre nome e cara e dispensara-o sem disfarçar o motivo. Só fazia umas horas como assistente pessoal de um jovem tetraplégico.
Para alterar o nome e a menção ao sexo nos documentos era preciso intentar uma acção contra o Estado, exigindo que reconhecesse a desadequação do assento de nascimento. Para a vencer, precisava de ser maior de idade, não ter filhos, apresentar um diagnóstico de transexualidade, estar a fazer terapia hormonal, de já se ter submetido às cirurgias de redesignação de sexo, e de ter vivido pelo menos um ano assumindo o papel atribuído ao género correspondente.
Apresentou-se no tribunal de fato e gravata. Quando o cirurgião Décio Ferreira, que substituíra Godinho de Matos, testemunhou, a juíza dispensou o resto dos convocados. A sentença saiu em 2007. “Uma alegria. De repente, podia casar-me, trabalhar, ir a um hospital.”
Casou-se pela Igreja Católica, cumprindo todas as tradições. “Sempre fui católico. Fiz primeira comunhão, a comunhão solene, o crisma, tudo. Estive para ser catequista. Estive até para ser freira. Mas isso por causa do que me estava a acontecer. Era uma forma de desaparecer.” Recorreram à procriação medicamente assistida para ter uma criança. Adoptaram outra, mais velha, com déficit cognitivo. Embora feliz com a família, sentia “alguma frustração” e adivinhava alguma na mulher. Só sossegou com a faloplastia, feita por Décio Ferreira a partir de um retalho tubular abdominal, já em 2015.
Para proteger os filhos do preconceito, mantém discrição sobre o seu passado, mas não está no armário. Ainda há pouco, este técnico superior, entretanto licenciado em enfermagem, iniciou funções num instituto público e, numa conversa sobre a diferença entre sexo e género, afirmou-se como homem trans. Que diria o pai, que achava que ele ia virar travesti?
Gisberta Salce e a palavra travesti
Rute detesta a palavra travesti, que só usou na juventude por não se saber identificar. “É um nome horrível. Sofri tanto, tanto, tanto. Ainda hoje me faz mal esse nome. Chamaram-me milhares de vezes esse nome. Fui muito pisada com esse nome.” Pior, só “traveca”, que a sua amiga, Jó Bernardo (n. 1965), pioneira do activismo LGBT+, gostaria de ver reabilitada, como foi “queer”, palavra inglesa outrora usada para insultar (estranho, esquisito, excêntrico) quem escapa à norma heterossexual ou cisgénero.
Quando Gisberta Salce (1960-2006) foi assassinada por um grupo de rapazes, no Porto, que confusão. Com base na informação do piquete da PSP, a imprensa começou por referir “um homem”, “um sem-abrigo”. Recorrendo a outras fontes, obtendo mais detalhes, usou o nome masculino, a palavra “travesti”. Só depois começou a corrigir para o nome feminino e a palavra transexual.
Alguns activistas LGBT+ tratavam de esclarecer. Travesti: uma pessoa que se disfarçava de um género diferente do seu. Transexual: uma pessoa que se debatia com uma incongruência entre identidade de género e sexo biológico. Gisberta era transexual. Nas ruas, todavia, várias amigas dela com modificações no corpo identificavam-se como “travestis”.
Nelson Alves Ramalho (2020) tem uma explicação para o sentido brasileiro do termo travesti ter entrado em uso na prostituição de rua: “A primeira geração de travestis brasileiros que chegaram à Europa, em especial à cidade de Paris, na década de 1970, começou, na segunda metade dos anos 80, a eleger novos destinos europeus, em decorrência das múltiplas deportações concretizadas pelas autoridades francesas”, explica. Portugal emergiu como destino. Nesse contexto, “o termo travesti começou a ser utilizado, cada vez mais, para designar indivíduos do sexo masculino que se prostituíam e que ampliavam os limites da alteração corporal”.
Gisberta fez esse circuito. Fugindo à violência contra pessoas LGBT+ no Brasil, em 1978 migrou para França. Volvidos dois anos, instalou-se em Portugal. Celebrizou-se com as suas imitações de Daniela Mercury e outras divas em bares como o Kilt, hoje Invictus. Diz Rute que se afundou quando os seus cães morreram atropelados. “A prostituição meteu-se por ela dentro por ser a maneira mais fácil de conseguir dinheiro para droga.”
Rute visitou-a no Hospital Joaquim Urbano, no Porto, onde esteve internada com sida, tuberculose, pneumonia e candidíase laríngea. Da última vez que a viu com vida estava de partida para a comunidade terapêutica O Lugar da Manhã, em Setúbal. Fugiu, refugiando-se numa tenda, montada num prédio inacabado, no Campo 24 de Agosto, no Porto.
As notícias intrigaram Rute. “Tenho três amigas desaparecidas. Só a Gisberta tem mamas.” Seria ela? Precipitou-se para o Instituto de Medicina Legal. “Um cheiro… Tinha os olhos abertos. Aqueles olhos azuis, lindos, a olhar para o infinito. Tinha um cabelo lourinho. Só as pontas. Deve ter ficado estragadinho. Mal sabia eu o que lhe tinham feito…”
Gisberta estava irreconhecível. Diz quem a viu que nos dias do fim, muito magra, muito pálida, usava cabelos curtos e roupas associadas ao género masculino. Um rapaz reconheceu-a nas suas memórias infantis. Começou a visitá-la com dois amigos. Gabaram-se de conhecer um “travesti”, que fizera “operações à cara” e “tinha mamas” e outros foram lá ver. Durante dias, 14 rapazes, quase todos retirados às famílias e postos à guarda das Oficinas de São José, agrediram-na de modo diverso. Acabaram por atirá-la para um poço.
“Ganhei medo”, confessa Rute. “Cortei o cabelo. Vesti-me de preto. Amarrei os peitos. Andava andrógena. Andava escondida. Andava escondida de mim até. Tinha medo que me fizessem mal. Depois de tudo o que tinha passado... A Gisberta passou tanto quanto eu, só não era operada. Sofreu as injeções de silicone. Sofreu as operações mal feitas. Sofreu o desprezo de certas pessoas.”
Tinham quase a mesma idade. “Eu também tinha perdido tudo. Eu nasci para ser mulher. Eu nasci artista. Eu gostava de espectáculo. E perdi capacidade de fazer espectáculo porque o meu corpo envelheceu. Já não tinha paciência para estar a ouvir os ramerrame dos frequentadores de cabarés e para beber álcool. Já estava com o fígado aleijado. E o meu corpo já não dava para fazer striptease. Eu já não servia para nada. Tinha perdido o meu Zé.”
José Luís Osório (n.1971) foi o amor da sua vida. Conhecera-o em 1989. “Eu estava a viver numa pensão. Trabalhava nuns botecozitos. Já andava no álcool. E na droga. Não conseguia aguentar. Era muita humilhação.” As colegas avisavam os clientes que ela era operada. “Os homens não pagavam mais champanhe. Mandavam-me sair da mesa. ‘Já não te queremos aqui!’”
Estiveram quase 12 anos juntos. Quando um cancro no fígado o levou, Rute mergulhou no luto. Procurando sair dele, entrou num desvario de sexo, drogas e álcool. Só parou no Santuário de Fátima. “Fui falar com a mãe de Deus. Eu disse-lhe: ‘Ó mãe, preciso da tua ajuda. Estou a perder a minha família.’ Para pagar aquela limpeza que ela me fez, eu disse: ‘Não vou ter mais sexo. Acabou!’”
Congratula-se por, da tragédia de Gisberta, ter emergido mudança à escala nacional. Em 2011, o país aprovou a primeira lei de identidade de género. Em 2012, previu o agravamento das penas por crimes motivados por transfobia. Em 2015, proibiu a discriminação laboral em função da identidade de género.
Por fim, já não era preciso fazer cirurgias de redesignação de sexo para mudar o nome e a menção ao sexo nos documentos. O pedido podia ser instruído em qualquer conservatória do registo civil, com um requerimento e um relatório comprovativo do diagnóstico de perturbação de identidade de género ou transexualidade, assinado por uma equipa clínica.
Rute livrou-se do nome neutro que adoptara no registo, até então a única possibilidade para pessoas trans que não queriam intentar uma acção contra o Estado: Niete, que significa nulidade, zero – “Eu sou nada”, pensara. Passou a Rute Mesquita Martins. O Rute Bianca é nome artístico. “Aquele papel veio atestar que tudo aquilo que eu tinha vivido valeu a pena, era verdade, não tinha sido em vão. Eu tinha direito ao meu nome e ao meu sexo. Era o ponto final daquela caminhada. Eu era a Rute. Eu sempre fui a Rute.”
Dani Bento
Pessoas trans e não binárias
Com o tema na agenda mediática e na agenda do associativismo LGBT+ multiplicaram-se as possibilidades de a informação chegar aos mais jovens. Aos 18 anos, saindo do Cartaxo, para estudar em Lisboa, Dani Bento (n. 1986) ganhou espaço para ouvir as suas próprias dúvidas.
Integrou um grupo de cross-dressing, palavra inglesa popularizada para escapar ao estigma da palavra travesti. “Tínhamos encontros quinzenais nos quais explorava a minha feminidade. Ao fim de uns anos, conclui que não era uma questão de roupa, de performance, de expressão. Era uma questão mais profunda.” Assumiu-se como mulher trans.
Para modificar os documentos, recorreu ao Santa Maria. “Tive quase dois anos para mudar o nome, porque o médico não me passava o relatório.” Qual era o problema? “Eu não cumpria estereótipos de género. Uma vez, contei-lhe que era engenheira de software e que estudava Astronomia e ele disse: ‘Isso são profissões de homem.’” Ao consultar o seu processo clínico, ficou de boca aberta. “‘Hoje, veio vestida como homem’; ‘Hoje, não fez a barba’; ‘Hoje, pintou o cabelo.’” A indignação levou-a ao activismo. Juntou-se à ILGA-Portugal: integra a direcção e coordena o Grupo de Reflexão e Intervenção Trans.
“Havia linhas orientadoras muito patologizantes, mas em 2012 saíram novas”, salienta Zélia Figueiredo. A transexualidade foi retirada do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, mantendo-se a disforia de género. Volvidos quatro anos, a Organização Mundial da Saúde decidiu passar tal condição das doenças mentais para a saúde sexual e reprodutiva.
Novas vozes se levantaram pela autodeterminação. E uma delas foi a de Dani. Portugal reconheceu, em 2018, o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género, dispensando de apresentar qualquer diagnóstico de disforia de género quem quer mudar o nome e a menção ao sexo nos documentos. Tornou-se o quinto país europeu a fazê-lo.
A palavra do momento é transgénero ou trans, um guarda-chuva para uma variedade de pessoas que não se identificam com o género atribuído à nascença. Entre as leituras, os debates, as reflexões, Dani descobriu que além disso é não binária, isto é, uma pessoa cuja identidade de género não cabe no binómio homem/mulher, não é exclusivamente masculina ou feminina.
Reconhece que pode ser “complicado perceber”. Há uma narrativa dominante sobre pessoas trans que desejam um completo processo de transição. “É preciso pensar que cada pessoa tem direito a fazer o seu próprio percurso.”
Para as pessoas que desejam mudar o corpo, é largo o tempo de espera na Unidade Reconstrutiva Génito-Urinária e Sexual, a funcionar desde 2011 no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra. O Hospital Santo António abriu uma consulta multidisciplinar em 2021 e tem dois médicos preparados para começar a fazer cirurgias de redesignação de sexo. Já neste ano, o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, em parceria com o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, abriu a Clínica de Diversidade de Género. Também aí a ideia é passar do acompanhamento de psicologia, psiquiatria e de endocrinologia para as intervenções médico-cirúrgicas, reduzindo o tempo de espera.
A descentralização das consultas é uma de várias reivindicações. A autonomia é outra. “Se eu disser a um médico que sou uma pessoa não binária, o meu processo cirúrgico cai.” Já testou Coimbra. “Eu queria fazer mamoplastia e a médica disse-me logo que sem fazer vaginoplastia não fazia mamoplastia. Acha estranho fazer uma coisa e não a outra. Eu disse-lhe: ‘Quem tem de lidar com o meu corpo sou eu, não é a doutora.’ Continuou a recusar. E é isso. Estamos sempre em luta.” A lei ainda nem reconhece a existência de pessoas não binárias.
Envelhecimento amargo e doce
Na história de Rute se vê que a comunidade LGBT+ não está imune aos choques geracionais. Basta ouvi-la. “As pessoas hoje nem sabem quem são. Se isso cria confusão em mim, que sou transexual, que sou do meio, imagine-se nas outras pessoas! Mas temos de aceitar. Cada qual tem direito à sua verdade. Todos temos direito de viver. Todos temos direito de ser felizes.”
A sua reacção inicial forte a essa realidade também era uma forma de validar as suas escolhas. “Sofri tanto, chorei tanto, levei tantas injecções de silicone, tenho o corpo a apodrecer para poder passar no meio da rua e dizerem: ‘É mais uma mulher que ali vai.’ Estou a pagar tão caro, tão caro. Sofremos tanto para nos integrarmos na sociedade, para sermos aceites.”
Olhando para trás, julga que cometeu o maior erro da sua vida em 1997. Quis aumentar o peito. “Como não tinha dinheiro para próteses, fui a uma ‘bombadeira’. Meti 4,75 litros. Meti quase um garrafão. Fiquei com umas mamas enormes. Maiores do que as da Pamela Anderson. Vim a descobrir que o silicone era industrial.” Com os anos, “que desastre”. Até os pés incharam.
Com tudo isso, orgulha-se da sua história. “Não me canso de falar dela. E falo da pila, que foi uma coisa de que eu não falei durante anos. Ó pá, não fazia parte de mim. Nojo! Eu tinha de me desligar daquilo. Passou! Mas hoje acho graça dizer que fui uma mulher de pila. Sou operada há quase 40 anos. Fui tão amada assim. Já nem sei o que é ter sido aquilo.”
Há uma certa sensação de dever cumprido. Em 2019, quando o projecto Invictas desafiou várias mulheres trans a escrever cartas para Gisberta, um exercício de diálogo sobre a evolução dos últimos anos, saiu-lhe isto: “Sofremos muito, muito e muito para que finalmente as vindouras trans tenham o reconhecimento no BI e a paz e a tranquilidade que tanto queríamos. E conseguimos. Continuam as injustiças e a discriminação contra algumas de nós, seja pelo meio onde vivemos, seja pela maneira de estar na vida.”
“A velhice dói muito, a transexualidade dói ainda mais”, avalia. Sente-se tão vulnerável, agora que a idade se combina com as doenças e o olhar dos outros persiste. “Cada vez que abro a porta tenho medo.” Como reagirão os outros? Protege-se. Leva uma vida recatada. Gosta de andar a pé, de ler livros de não-ficção, de cantar. Cuida da mãe dela, que conta 97 anos e muitas maleitas, e do seu papagaio, “Reizinho”, que “é um mimalho, também está velhinho”. A instabilidade emocional é grande. Ora chora, ora ri. Ora irradia, ora apaga-se.
Com tudo o que já passou, cada dia lhe parece um milagre. “Sei que o fim está a chegar. Tento aproveitar cada minuto. Ainda consigo ver? Felicidade. Ainda consigo andar? Felicidade. Quantas amigas minhas morreram? Ainda estou aqui. Tenho de aproveitar!”
Referências bibliográficas
+
RAMALHO, Nélson Alves, Virar travesti. Trajectórias de vida, prostituição e vulnerabilidade social, Tinta da China, 2020.
MARQUES, Rui Oliveira, Histórias da noite gay de Lisboa, Ideia-Fixa, 2017.
SALEIRO, Sandra Palma et al., Estudo nacional sobre necessidades das pessoas LGBTI e sobre a discriminação em razão da orientação sexual, identidade de género e expressão de género e características sexuais, CIG, 2022.
TEIXEIRA, Teresa et al., Isto não é um glossário – in/definições de género e sexualidade, Gentopia, 2022.
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