Fotografia de Jo Rodrigues Fotografia de Jesualdo Lopes Fotografia de Maria Francisca Ferreira Fotografia de Allan Barbosa

Jovens LGBT+. A luta (também) é feminista, negra, migrante, não binária

Fluxos migratórios e Internet introduzem novos protagonistas no activismo em Portugal. Interseccionalidade é a palavra de ordem.

A homossexualidade só não é crime em Portugal há 40 anos. Neste especial multimédia, resgatamos memórias de pioneiros do movimento LGBT+. Atendemos às particularidades do que tem sido a luta trans. Procuramos saber que desafios enfrentam agora os mais velhos. E que lutas animam os mais jovens. Alinhamos uma cronologia do movimento LGBT+ com imagens de época.

O movimento social pelos direitos das pessoas com diversidade sexual e de género já não é só branco e português, como na origem. Integra cada vez mais novos protagonistas nacionais e estrangeiros ao mesmo tempo que se alarga para abarcar – além de lésbicas, gays, bissexuais e transgénero – queer/em questionamento, intersexo, assexuais e outras possibilidades (LGBTQIA+).

A socióloga Ana Cristina Santos (n. 1975), estudiosa do movimento em Portugal, observa agora “uma influência muito grande de pessoas de fora”, que trazem “vivências de um activismo mais frontal, mais combativo”. Considera que isso pode fomentar “cisões entre componentes mais disciplinadas e mais desobedientes, mas oxigena o movimento, confronta-o com aquilo que conquistou e sobretudo com as ausências, as exclusões internas, o que deve ser melhorado”.

Fotografia de Jesualdo Lopes

Jesualdo Lopes

Activismo negro queer

Jesualdo Lopes (n. 2000) cresceu agarrado à tecnologia de comunicação e informação, como muitas pessoas da sua geração, a Z, a dos nascidos entre 1990 e 2010. “Consumi muita cultura estrangeira online. Sempre quis morar fora, conhecer pessoas de outras culturas, expandir os meus horizontes.”

Em Odivelas, nos arredores de Lisboa, há uma forte presença de africanos e afrodescendentes. Sendo descendente de guineenses, nunca se sentiu “a única pessoa negra”. “Vivia numa bolha.” Ao estudar Cinema na Universidade de Leeds Beckett, em Inglaterra, percebeu-se uma excepção.

Nem no universo LGBTQIA+ parecia encaixar. “Se for a um sítio queer mainstream, sinto-me invisível. Saio com um amigo branco, falam com ele. É visto como mais interessante, mais abordável. Mesmo dentro da comunidade negra, se estiver com amigos de pele mais clara, noto a diferença.”

Na comunidade negra, também não se sentia confortável para ser quem é. “A partir do momento em que uma pessoa negra se assume como queer é complicado navegar nos meios familiares.” Nunca falou sobre a sua orientação sexual com a mãe. “Está subentendido. É muito assim que uma pessoa queer navega nas comunidades negras. Há uma cultura do não dito. O que não se diz não existe.”

Com a pandemia de covid-19, recolher obrigatório. “Deu tempo para reflectir sobre a minha posição no mundo.” Houve a morte de George Floyd, em Minneapolis, nos Estados Unidos, com um joelho de um polícia no pescoço. E a morte de Bruno Candé, em Lisboa, com balas disparadas por um antigo combatente da Guerra Colonial. A primeira projectou o movimento norte-americano Black Lives Matter para uma escala global. A segunda suscitou manifestações contra o racismo em Portugal.

A Internet abria-lhe também caminho até pessoas que, noutros países, com confiança e orgulho, se identificam como negros queer. Inspirados pelas teorias da norte-americana Judith Butler e da italiana Teresa de Lauteris, diferenciavam-se do movimento LGBT+. Preferiam ocupar outro lugar estratégico de luta, afirmar-se por oposição à norma branca e heterossexual.

Orientando-se pelo que vira em Leeds, Jesualdo criou o The Blacker The Berry, nome de um romance do escritor norte-americano Wallace Henry Thurman, nome de uma canção do rapper norte-americano Kendrick Lamar, agora nome de um colectivo artístico de negros queer para negros queer. “Lançava fanzines em papel, mas funcionava muito mais à base do Instagram, de publicar informação, de interagir com pessoas, de criar comunidade online.”

Com o recuo da covid, não se ficou pela divulgação de artistas de África e da diáspora. Desde 2021, primeiro em Leeds, logo em Lisboa, organiza exposições, oficinas, conversas e um grande evento que acaba por ser uma festa. Isso tudo seguindo uma “política de espaços seguros”. “Temos zero tolerância com racismo, homofobia, transfobia, etc. É um espaço onde pessoas como eu podem existir.”

Ficou surpreendido com a afluência, sobretudo no evento anual em Lisboa – no Núcleo, em 2021, na Casa Independente, em 2022. “Viu-se o quão grande a comunidade negra queer é em Portugal. Tendo crescido onde cresci, não a via. Daí também ter achado que na comunidade queer não havia espaço para pessoas como eu.”

Agora, quer estender a acção. “O objetivo é levar o tema para dentro da comunidade negra, de modo a nos educarmos uns aos outros. Sempre me questionei porque é que os eventos supostamente inclusivos não abrangiam locais como Amadora, Odivelas, etc. O acesso ao centro da cidade não é igual para todos.”

Para já, mantém distância do movimento LGBTQIA+, embora já tenha sido abordado pela rede ex aequo, uma associação de jovens lésbicas, gays, bissexuais, trans, intersexo e apoiantes. “Como ao crescer não senti que houvesse espaço para pessoas como eu na comunidade queer e nos espaços queer, prefiro não forçar a entrada, prefiro criar os nossos espaços. Se forço, não é genuíno.”

Cada vez mais organizações se declaram abertamente anti-racistas. A ILGA-Portugal tem um Grupo de Apoio e Partilha de Pessoas Negras LGBTI. Da comissão organizadora da Marcha de Lisboa faz parte a Djass – Associação de Afrodescendentes, empenhada em “defender os direitos das/os negras/os e afrodescendentes em Portugal e de combater o racismo”. Da do Porto, o SOS Racismo.

De pessoas ciganas nem sinal. “É um universo onde o movimento LGBT+ não chegou”, confirma Sérgio Vitorino, histórico activista que representa o colectivo Panteras Rosa – Frente de Combate à LesBiGayTransfobia na Marcha de Lisboa. “Não chegámos lá e não chegaremos se não forem as próprias pessoas ciganas a construir essa possibilidade.” Há outras ausências de comunidades racializadas ou migrantes. “Isso tem que ver com as várias discriminações que se cruzam na vida das pessoas. Esta é uma sociedade de desigualdades e por isso a leitura não pode ser exclusivamente LGBT+, tem de ser multi, como se diz na academia, tem de se olhar para um conjunto de opressões.”

Fotografia de Maria Francisca Ferreira

Maria Francisca Ferreira

Feminismo interseccional

Uma palavra ganha força nesse e noutros movimentos sociais: “interseccionalidade”. Como é que género, cor de pele, etnia, classe, orientação sexual, idade, diversidade funcional e outros marcadores sociais se combinam, influenciando a forma como cada um experimenta a vida em sociedade?

O termo foi cunhado pela investigadora norte-americana Kimberlé Crenshaw em 1989. Brotou do movimento feminista – as mulheres negras não se sentiam representadas no movimento negro, que reproduzia o machismo, nem no movimento feminista, que reproduzia o racismo. Ganhou balanço na Conferência Mundial contra o Racismo, na África do Sul, em 2001.

Maria Francisca Ferreira (n. 1999) não acredita num feminismo que não seja interseccional. Integra a Feminismo Sobre Rodas, uma novíssima associação que se declara feminista, anti-racista, anti-homofóbica, antilesbofóbica, antitransfóbica. Representa a Associação de Estudantes da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto na Comissão Organizadora da Marcha do Porto. E tão-pouco acredita num activismo LGBTQIA+ que não seja feminista. “As mulheres lésbicas e as mulheres trans sofrem opressões por serem mulheres e por serem lésbicas ou trans.”

As lésbicas sempre integraram o movimento feminista. Durante anos, permaneceram invisíveis. Até para não servirem de munição aos adversários que caracterizavam as feministas como mulheres que odiavam homens. Mas, nota a investigadora Eduarda Ferreira, nas últimas duas décadas, “as interseções com o movimento feminista têm fornecido um espaço de afirmação ao activismo lésbico”.

A primeira colaboração formal remonta a 2000, ano da Marcha Mundial de Mulheres. Aí se distribuiu o primeiro Manifesto Lésbico Português, subscrito pelo grupo de mulheres da ILGA-Portugal, o Clube Safo, o Grupo Lilás e o Grupo de Trabalho Homossexual do PSR. Diz a investigadora Manuela Tavares que a aproximação começara em 1998, no primeiro referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez, por iniciativa das lésbicas. E ganhou força em 2004, quando o Clube Safo e a Não Te Prives se aliaram à UMAR e à Acção Jovem Pela Paz, para apoiar a vinda do barco da organização neerlandesa Women on Waves, numa acção de campanha pelos direitos sexuais e reprodutivos.

“Temos conseguido ganhar algum espaço dentro do movimento feminista”, congratula-se Maria Francisca. Mas não há um feminismo, há vários. “Alguns continuam a excluir as mulheres trans, alegando que não são mulheres de verdade”. São as TERF, sigla inglesa para feminista radical transexcludente.

Sente-se uma privilegiada, Maria Francisca. A mãe introduziu-a no feminismo e reagiu com naturalidade à sua orientação sexual. “Lembro-me de lhe dizer: ‘Olha, mãe, acho que sou lésbica, acabei de estar com uma rapariga.’ A minha mãe perguntou-me como tinha sido, como me tinha sentido. Depois, disse-me para me descobrir e para ser feliz.”

Empolgou-se quando, em 2019, a sua amiga Patrícia Martins (n. 1988) se lembrou de fazer um roteiro feminista e a desafiou a juntar-se-lhe. Chamaram-lhe Feminismo Sobre Rodas. Seleccionaram Amarante, Lousada, Barcelos, Ovar, Viana do Castelo, Miranda do Douro, Mogadouro, Vimioso e as aldeias de Uva, Atenor e Vale de Algoso. E lá foram com filmes, debates, intervenções de rua.

Já sonhavam com uma nova rota quando a crise de saúde pública as obrigou a ficar em casa. As notícias davam conta de um pico de violência doméstica. Fizeram uma campanha online, em parceria com a UMAR. De repente, já não eram um projecto, mas um colectivo. Formalizaram-se como associação em 2022.

Do ponto de vista legal, parece-lhe que estão acautelados quase todos os direitos. Falta trazê-los para a vida de todos os dias. E para isso, na sua opinião, “é preciso mais activistas e um activismo diário, capaz de dar resposta aos problemas do quotidiano”.

Fotografia de Allan Barbosa

Allan Barbosa

Mobilização por migrantes LGBT+

Allan Barbosa (n. 1993), natural de Minas Gerais, no Brasil, tem as mãos na massa. Aterrou em 2018, no dia em que Jair Bolsonaro ganhou a primeira volta das eleições presidenciais, decidido a fazer mestrado em Ciência Política na Universidade de Aveiro. “Eleito Bolsonaro, isso foi um motivo adicional para ficar.”

Os crimes de ódio contra pessoas LGBTQIA+ assumem uma proporção “assustadora”. “O Brasil lidera rankings internacionais de violência contra estas pessoas.” Naquele ano, fora morta Marielle Franco (1979-2018), que lutava pelos direitos de mulheres, negros, favelados, LGBT+. De repente, ascendia à presidência um homem com um discurso conservador, misógino, homofóbico.

Perante aquele resultado, instigada pelas perguntas que vários amigos lhe estavam a colocar num desespero até então mitigado, a lexicógrafa Débora Ribeiro (n. 1985) decidiu criar a Queer Tropical. Começou por ser um grupo de Facebook, uma rede de apoio para quem quisesse migrar para Portugal.

Allan leu, no jornal espanhol El Mundo, num artigo intitulado “Portugal, refúgio para homossexuais fugidos do Brasil”, uma referência à Queer Tropical. Juntou-se ao grupo, então inundado com pedidos de informações sobre visto de entrada, autorização de residência, custo de vida, direitos LGBTQIA+. Entretanto, começaram a chegar pedidos de residentes em Portugal.

“Nós, brasileiros, somos a maior comunidade migrante em Portugal e dentro dela há essa comunidade LGBTQIA+ que muitas vezes não dispõe de redes de apoio”, salienta. “Já tivemos casos de pessoas que estão totalmente sozinhas.” Viajaram desacompanhadas, receosas do que lhes poderia acontecer no Brasil. Uma vez em Portugal, não se sentiram amparadas nem sequer pelos compatriotas. “Por um lado, sofrem preconceito no país de acolhimento por serem migrantes. Por, dentro da comunidade migrante, sofrem preconceito por serem LGBTQIA+.”

Para “ampliar o trabalho com esses públicos que precisam de ajuda”, a Queer Tropical formalizou-se com a categoria de associação (2021). Não se põe à margem do movimento LGBT+. Integra as marchas do orgulho no Porto, em Lisboa e em Aveiro, sendo Allan co-fundador desta última.

“A gente está chegando a esses espaços, a essa representatividade”, diz. “Com esta visibilidade que o grupo foi ganhando, a interseccionalidade torna-se mais discutida, mais presente. Temos também trazido uma reflexão política. Nos últimos quatro anos, boa parte dos eventos em que participei giravam em torno da ascensão da extrema-direita no Brasil. Ser uma pessoa LGBTQIA+ não é um símbolo, um rótulo, uma bandeira arco-íris que se pendura na janela no mês de Junho; é uma forma de estar no mundo e de agir politicamente. Trazer essa pauta da ascensão da extrema-direita para o debate [em Portugal] também é uma forma de politizar, de mostrar que os direitos são conquistados, mas o perigo mora ao lado.”

Fotografia de Jo Rodrigues

Jo Rodrigues

Saúde para pessoas trans e não binárias

Foi o actual contexto político que dispôs Jo Rodrigues (n. 1995) para a acção. Em 2019, Portugal elegeu um representante do Chega, cujo programa continha o fim do casamento entre pessoas do mesmo género. Em 2022, já contava 12 na Assembleia da República. De súbito, “para haver intervenções homofóbicas ou transfóbicas, a temática em debate nem precisava de ser LGBTQIA+”.

Tudo aquilo afectava Jo de uma forma pessoal. Já fora vítima de bullying na escola do ensino básico que frequentou em Lagos. Para se proteger, construíra uma máscara heterossexual que só na Universidade do Porto desconstruíra. E ao estudar Medicina confrontou-se com a dureza da realidade das pessoas trans e não binárias.

Em 2019, assistiu a inúmeras consultas com a sexóloga Zélia Figueiredo (n.1955) no Hospital Magalhães Lemos, no Porto. Quase sempre, ouvia algum relato de violência, não raras vezes nos serviços de saúde. Decidiu dedicar-lhes a dissertação de mestrado Integrado de Medicina. Entrevistou 71 pessoas e mais de metade reportaram discriminação por parte de profissionais de saúde.

Quando publicou o artigo na Revista Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, o seu nome propagou-se. “Comecei a receber pedidos de ajuda. ‘O meu médico de família foi transfóbico comigo. Como faço para ter acesso a consultas sem ir lá?’ ‘Preciso de marcar uma consulta, mas não posso ir ao médico de família, porque também é o médico dos meus pais e eles não podem saber. O que faço?’”

Viu-se sem escapatória. Tinha de agir. Em 2021, com “pessoas médicas, LGBT+ ou aliadas”, fundou a Anémona. “Inicialmente, juntaram-se pessoas da minha faculdade e pessoas trans próximas, mas expandimos. Aceitamos qualquer pessoa que venha com vontade de ajudar.” Além de encaminhar utentes, procuram sensibilizar profissionais de saúde. No primeiro ano, as suas sessões abrangeram 90 profissionais e 400 estudantes. No segundo, 260 profissionais e 200 estudantes.

Naquele rodopio, Jo descobriu-se como pessoa não binária. “Juntei-me à rede ex aequo, que tem um grupo de pessoas trans, não binárias ou em questionamento. Ouvi histórias de vida iguais à minha. As pessoas falavam de si da forma que sempre me vi. E foi aí que comecei a perceber. ‘Espera lá. O que tu sentes tem nome.’”

Não é identidade que esteja reconhecida na lei. Nos documentos, em Portugal, só há dois géneros possíveis: masculino e feminino. “Temos uma lista de nomes masculinos e outra de nomes femininos. E só podemos escolher um nome de uma dessas listas.” Jo não consta, apenas Jó.

A lei da autodeterminação da identidade de género prevê o uso de um nome social. No hospital onde tem estado a fazer o ano comum, expôs o seu caso. Os colegas respeitam a sua vontade, tratam por Jo, mas baralham-se, porque nos registos hospitalares continua a aparecer o nome que consta nos seus documentos. “Quem viu estes doentes? Quem pediu estas análises?”

Tentar resolver é entrar num labirinto do qual, por enquanto, não parece haver saída. “Fui falar com os serviços do hospital. Não aceitam, a menos que troque o nome na Ordem dos Médicos. Na Ordem dos Médicos, só trocam se fizer a mudança no registo civil. O registo civil não aceita.”

Nas sessões de sensibilização que faz em centros de saúde e hospitais, tenta explicar aos profissionais de saúde o que é uma identidade não binária. “O mais simples é pegar em caixinhas. Temos esta caixinha de homens e esta de mulheres. As pessoas não binárias não estão nestas caixinhas. Têm uma perna em cada uma. Às vezes, em nenhuma. Estão noutra caixinha.”

Não é coisa que tenha discutido com familiares com muita idade e pouca escolaridade. “Quando é um familiar, acho que a solução é ir pela empatia. Ou aceita ou vai deixar aquela pessoa desconfortável. Quero pensar que a maioria dos novos familiares deseja o nosso bem, mas sei que às vezes não é assim.”

Fotografia de Wolf

Wolf

O discurso de ódio e o antídoto que é o amor

Wolf (n. 1990) sabe o que é violência na família em razão da diversidade sexual e de género. Ia nos 11 anos quando a mãe leu o seu diário. “Percebi que ela sabia quando, no meio de uma discussão, disse: ‘Tu não és normal! Uma mulher que gosta de mulheres não é normal!’ As coisas começaram a descambar. Deixei de ser filha daquelas pessoas. Insultavam-me. O meu pai metia-me a mão na cabeça e dizia: ‘Sai demónio!’ Chegou a dizer que eu era a coisa mais nojenta que já vira.”

Não imagina violência que penetre tanto como a exercida por quem devia proteger. “Acabamos por pensar que o problema está em nós, que não somos merecedores de amor. Fica a saúde mental muito afectada.” Valeu-lhe uma tia. “Depois de uma tentativa de suicídio, prometi-lhe que juntas iríamos superar. Fiz psicoterapia intensiva. Tomei medicação. Fui recuperando. Tive sorte em ter a minha tia. E em encontrar a pessoa que está ao meu lado há oito anos.”

Nunca teve uma expressão de género típica. Era aquilo a que se costumava chamar maria-rapaz. Não se revia no papel tradicional de rapariga nem no de rapaz. Tudo se tornou mais claro ao deparar-se com pessoas que se identificavam como não binárias, manifestando predilecção pelo uso de nomes e pronomes neutros. Wolf não se importa de ser tratada por ele ou ela, mas prefere elu/delu.

O projecto #NãoMeCalas, nascido no primeiro confinamento, aborda temáticas LGBT+. No final de 2020, começou a falar em género não binário. Não estava preparada para tanto ódio. “As pessoas não aceitam. Dizem que é para chamar a atenção, que é um problema mental. Confundem sexo biológico com género. Perguntam como vou à casa de banho, se faço as minhas necessidades na caixa de areia dos gatos, se me identifico com um cavalo, se me identifico com um robot. Insultos, ameaças de morte, tudo.”

Teve de repensar a sua acção. “Temos esta ideia de país LGBT friendly, mas essa não é a realidade. Nas redes sociais, as pessoas mostram o que são. Sentem essa liberdade. Acham que nada lhes irá acontecer. Sou uma pessoa não binária, mas deixei de fazer posts sobre o não binarismo. Faço stories.”

Tem mais de 90 mil seguidores no TikTok e perto dos 10 mil no Instagram. “No início, o meu objetivo não era ser activista. Era trabalhar com redes sociais, fazer vídeos diferentes, ser influencer. Depois, percebi que as pessoas precisavam de ajuda e que eu poderia ser um porto de abrigo.”

Linhas de apoio e prevenção do suicídio

O #NãoMeCalas não é só sobre temática LGBT+. “É, sobretudo, sobre amor. Sinto muito que a humanidade se está a destruir. Há muita falta de amor. E de empatia, de humanidade mesmo. Precisamos de regressar a nós, de nos conhecermos a nós próprios, de tentarmos perceber quem somos e o que estamos aqui a fazer.”

Wolf, terapeuta de Reiki residente em Barcelos, não ambiciona apenas educar a população em geral. Deseja fortalecer as pessoas que integram a comunidade LGBTQIA+. “Comecei a perceber que é muito necessário. Estamos muito desunidos enquanto comunidade. Seria importante deixarmos as rivalidades, percebermos que estamos do mesmo lado. Quando mais nos fortalecermos enquanto comunidade, mais facilmente poderemos mudar o que queremos.”

Ana Cristina Santos nota essa fragmentação. “Nem sei se podemos falar em movimento LGBTQIA+ neste momento. Podemos falar em iniciativas, colectivos, associações, mas aquela concepção mais colectiva de movimento tenho algumas dúvidas. É como se o essencial estivesse feito e o movimento tivesse encontrado espaço para assumir as suas diferenças internas.” Se cada grupo se fechar sobre si mesmo, questiona Eduarda Ferreira, “como é que se faz uma luta?”

Referências bibliográficas

+