A mulher que nunca sofreu de amor
Uma paixão não vale nada se não nos acertar como uma chapada na cara. Se não nos revolver as entranhas. Dói-nos mais do que uma cólica renal, mas pode ser a coisa mais bonita do mundo.
A Filipa é uma mulher a que nenhum homem fica indiferente (e muitas mulheres também não): é bonita, atraente, confiante, bem-sucedida. A acreditar nela nunca conheceu a rejeição. Se quer, tem. Solteiros ou casados, pouco importa, nunca resistem ao canto da sereia. Mas não é esse o facto que faz da Filipa uma criatura quase mitológica. O que é verdadeiramente fascinante é que aos 28 anos ela nunca se apaixonou.
Quando me confessou isto, há umas semanas, senti por momentos alguma inveja.
Deve ser incrível não termos de nos despir das nossas máscaras, pôr a nu as nossas fragilidades, assumir as nossas inseguranças, aceitar a nossa vulnerabilidade. Naquele momento em que nos sorriem e os nossos olhos brilham, deixamos de ser donos do nosso destino. Depositamos o nosso coração em mãos alheias e confiamos que cuidem bem dele, mas nunca deixamos de temer que o atirem para o chão e o desfaçam em mil pedaços. Não há paixão sem ruínas. Queremos a felicidade eterna, mas sabemos que há uma desgraça à espera de acontecer. A paixão tem prazo de validade.
Apaixonarmo-nos é entrar numa montanha-russa, viver num desassossego permanente. É sentir que o coração nos bate fora do peito. É perder o apetite, dormir mal. É sufocar de ansiedade, temendo que a qualquer momento tudo se desmorone. É ter medo de não sermos correspondidos. É ter medo de perder. É sentir que não somos suficientes. É olhar para o espelho e já não nos reconhecermos. É querer ser leão e fazer olhinhos de Labrador Retriever. É sentirmo-nos tolos. A paixão é uma doença. Dá-nos cabo da vida. Quem é que quer isso?
A paixão sempre violenta, conturbada, deliciosamente obsessiva. Fantasiamos com o “viveram felizes para sempre”. Romantizamos qualidades, cegamos perante os defeitos. Ressacamos dos beijos que demos e temos saudades a toda a hora. Como se fôssemos adolescentes de novo e fizéssemos tudo pela primeira vez. Como se não tivéssemos aprendido nada. Deixamos de saber o que dizer e fazer. Desejamos tão ardentemente o primeiro beijo, queremos tanto que seja perfeito, que nos foge a coragem. Entramos em pânico. Bloqueamos. Quem é que quer isso? Quem é que quer ter 15 anos de novo? Viver neste tormento? Arriscar a rejeição?
Sim, por momentos invejei a Filipa. Dever ser uma bênção nunca sofrer de amor. Não ter o coração cheio de cicatrizes. Nunca ter arriscado o salto e acabar esparramado no chão. Não ter de montar os ossos do esqueleto uma e outra vez. Não sentir que já não somos bem inteiros. Nunca perder o amor-próprio, inventar defeitos onde não existem. Nunca procurar outros corpos para camuflar a dor, como se um penso rápido estancasse uma hemorragia. Não ter saudades do tempo que não volta. Chorar o que não se viveu. Que bom seria ser imune a tanto sofrimento, fintar a dor e a rejeição. Quem não sente, não sofre. Quem não ama, não perde. É uma ideia muito tentadora. Apaziguadora até.
Mas que sentido tem a vida sem paixão? Sobrevive-se, mas não se vive de verdade. Uma vida sem paixão é como comida sem sal. Sabe-nos a nada. É uma viagem sem destino. Uma vela sem chama. Um poema que não nos comove. Tem de haver perigo. Tem de haver risco. Tem de haver destroços. Temos de ficar em cacos para ressurgimos mais fortes. Uma paixão não vale nada se não nos acertar como uma chapada na cara. Se não nos revolver as entranhas. Se não nos atingir como um raio e nos deixar prostrados no chão, à espera que um beijo nos devolva a vida. Dói-nos mais do que uma cólica renal, mas pode ser a coisa mais bonita do mundo. Mesmo que dure uns dias ou poucas semanas. Mesmo que todos achem que somos tontos porque nos iludimos. Porque fantasiamos. Porque obsessionamos. A paixão é uma armadilha, mas sem ela não vive ninguém. Nem mesmo a Filipa.