Novas palavras para a humanidade

Comecei com a observação de uma árvore. Uma árvore plantada no meio de uma Praceta. Aquela era a única árvore do Bairro. Uma árvore solitária e maciça rodeada de cimento.

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"Esta árvore tinha crescido vigorosa como se estivesse entre uma floresta" Michael Morse/pexels
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Há uns anos, poucos, convidaram-me para escrever uma peça de teatro a partir da pesquisa do território da Amadora, de alguns dos seus bairros e dos seus moradores. A proposta era que a recolha fosse feita ao modo de exploração puramente humana, sem recurso a telemóveis, nem GPS, nem gadgets ou dispositivos digitais de espécie nenhuma. (O único objeto de orientação que poderia usar era um Dicionário — num confronto entre o que a palavra queria dizer, e o que a realidade fazia realmente dela.)

A ideia era não recorrer à informação formal já existente, e criar uma espécie de mapa de histórias das pessoas daquele lugar tão fustigado pela má fama e apreensão. Já que o mapa do território já tinha sido cartografado e estavam assinaladas as ruas, as estradas, os números das casas, e feitas as estatísticas, as medições, as contagens, a proposta era agora cartografar as memórias e as vidas que ali habitavam. Durante tórridos dias de um verão particularmente quente e sufocante, deambulei pela periferia da cidade, pela Cova da Moura, Zambujal, Casal da Mira.

A minha memória destes dias foi agora acordada por notícias ensurdecedoras, onde palavras-rastilho parecem querer incendiar a nossa compaixão pelos outros, e inflamar a nossa lucidez — que sempre requer algum silêncio para escutar o que nos é estranho, e que se faz valer não de dicionários formais, mas de bússolas interiores para a nossa humanidade. Voltei ao meu caderno de anotações desses dias, que agora parecem tão distantes e com a história uma Mulher. Foi no Bairro do Zambujal que a conheci.

Comecei com a observação de uma árvore. Uma árvore plantada no meio de uma Praceta. Aquela era a única árvore do Bairro. Uma árvore solitária e maciça rodeada de cimento, de muros e casas. Fixada pela raiz grossa, bem presa ao chão. A respirar serena entre o betão. O tronco era sólido e forte. Ramos quebrados. Muitas folhas, encrespadas e rijas.

“ÁRVORE. ( ár·vo·re ) nome feminino. Planta permanentemente lenhosa de grande porte, com raízes ramificadas, e ramos bem acima do nível do solo. Possuem grande fixação exercida ao solo por essas mesmas raízes.”

De acordo com uma observação imediata podia diagnosticar-se alguma espécie de abandono, solidão. Como se a sua vida estivesse asfixiada dentro de uma carapaça gasta e rija, perdida no quadrado de cimento da praceta. Aquela era a sua morada. E durante o dia a mulher ficava sentada ao lado da árvore, como se fizesse parte dela.

Quando a vi não distingui que era uma pessoa. Era como se fosse mais um ramo velho da árvore.

As crianças brincavam à volta da árvore. Puxavam-lhe os galhos, e ela silenciosa, alongava-se indolor repuxada pelos esticões.

— Oh menina, eu não tenho história nenhuma para contar. A minha história é igual às outras. Isso dos Ciganos andarem de um lado para o outro é dos nossos avós. Nós vivemos numa casa. Presa ao chão! Dantes eram barracas. Agora são apartamentos!

Quando se tira a árvore do seu ecossistema, quando se planta uma espécie fora do seu habitat, ela muitas vezes padece de uma doença fulminante ou de longa duração. Mas esta árvore tinha crescido vigorosa como se estivesse entre uma floresta.

Na praceta cinzenta do bairro, alheia ao betão, a mulher cigana ficava plantada entre os prédios.

Pesquisei a palavra Cigano no Dicionário: “CIGANO (ci·ga·no) nome masculino: relativo a / ou / próprio dos ciganos, povo nómada, que se espalhou pelo mundo.
adjetivo: que ou aquele que leva vida errante / que ou aquele que tem arte e graça para captar as vontades/ que ou quem age com astúcia para enganar ou burlar alguém. Burlão, impostor, trapaceiro, velhaco; avarento, sovina.”

“Cigana = Ave arborícola semelhante ao faisão, de cabeça pequena adornada com uma poupa eriçada em forma de leque, asas largas e cauda comprida.”

Sento-me ao lado dela. A mulher gostava de ser cigana. Não sabia ser de outra maneira. Quando algum explorador curioso a abordava ela respondia:

— É assim que é cá com a gente. As meninas não escolhem o noivo. São eles que escolhem as raparigas. Foi assim sempre. E a história das coisas não se muda de um dia para o outro. Há-de mudar. Eu sei que vai mudar. Mas não é de um dia para o outro… Mas olhe que as raparigas podem dizer que não! Têm o direito de dizer que não.

A mulher levanta-se. Estica as pernas. Um corvo atento gira sobre as nossas cabeças. Não larga a mira. A Árvore sempre sob o olho certeiro do corvo. Ela passa a mão pelo tronco da árvore como se afagasse um animal. Ela, que pode cuidar da casca do seu tronco, podar os ramos, enfeitar-se com frutos. Só não pode sair dali. Nem deixar de ser árvore, para experimentar ser rua, ou ser pássaro, ou pólen esvoaçante de flor. Só Árvore.

As horas vão passando. As crianças arrancam os frutos da árvore e comem. Cospem os caroços a caminho da escola. A Mulher olha para as crianças:

— Sabe… A escola é para os meninos. Uma menina cigana vai à escola até ao quarto ano. Depois com sorte até ao sexto, ou até ao nono. O resto fica para os rapazes. Eu gostava de ter ido à escola.

Ela gostava de ter ido para além do sexto. De experimentar ser mulher antes de ser mãe. De gozar do cheiro das flores antes de dar frutos. Mas para uma Cigana, ser mulher é ter a raiz bem presa nas tradições. Na família. No marido. Como uma árvore que balança ao vento, com o movimento vigiado, acautelado sob os olhos do corvo.

As Estações giram. As crianças crescem. A Árvore amadurece. Árvore envelhece por fora. A vida mirra a partir de dentro.

“Em Portugal, certas árvores são classificadas de interesse público. Os critérios são as árvores centenárias: todas as que pela sua forma ou estrutura criem admiração a quem as contempla e todas aquelas árvores em que se faça prova documental que estão associadas a fatos históricos relevantes.” Pesquiso.

Ela não tinha uma história relevante. A sua história ficara perdida entre histórias iguais de outras árvores.

A Mulher olha-me com os seus olhos fundos, verdes de folha, debaixo da pele escura. Compõe a madeixa do cabelo cinzento.

Os que desconhecem o destino da Árvore, presumem-na parada porque preguiçosa, silenciosa porque desconfiada, isolada porque orgulhosa. Nem sabem que debaixo da terra, escondida da vista, a raiz que lhe deu vida, alimento, é também a sua prisão. Sob olhos do corvo que cuida de proteger a árvore. A levar surra das tempestades, e a cravar mais fundo as raízes, porque sair, não é movimento que se atribua a uma árvore. Uma árvore não sai. Uma árvore fica sempre, apesar de tudo. Mesmo que partida. Mesmo que quebrada. Depois assim parada já sem frutos, e ressequida na terra, a árvore parece sem préstimo, inútil. Parece desnecessária, supérflua, que ocupa espaço e usa recursos. A árvore.

— Às vezes de noite, oiço a árvore a chorar, Mas eu venho aqui. Fazer-lhe companhia —, sorri, a engolir a água nos olhos.

No dia seguinte voltei para voltar a encontrar a mulher sentada ao lado da árvore. Velha como ela, com troncos compridos como os seus longos cabelos agora gastos, e em tempos brilhantes e floridos. Em tempos, árvore de flores e depois de frutos, sempre a mesma, com as raízes presas à casa onde criara oito filhos, só dois rapazes — com a sorte de serem meninos e de não terem de se segurar à terra, e dobrar para não tombar na surra das intempéries. Os meninos que podem escolher em vez de ser escolhidos, e estudar em vez de dar frutos, e ser estrada e não só coisa viva, cravada no mesmo lugar.

Ontem li sobre a proibição das mulheres afegãs ouvirem as vozes umas das outras. Tão distante. Parece. Mas aqui tão perto: li sobre os movimentos incels e o movimento tradwifes, e o grupo do Telegram onde milhares devassavam a privacidade de mulheres. Apeteceu-me pousar os gadgets. Precisamos de inventar novos dicionários. Precisamos de novas palavras para a humanidade.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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