A minha filha não tinha ainda dois anos quando Isilda começou a vir passar uma tarde com ela. Um dos poucos luxos a que me permiti nessa altura, quando o tempo me engolia e eu deixei de poder cuidar de mim. A minha filha cresceu sem os avós, num caso, e com a outra metade dos avós, ainda vivos, a viverem longe. Não creio que haja uma palavra para descrever os netos que foram órfãos de avós ou os avós que não tiveram netos. Às vezes nem a palavra saudade entra aqui. É apenas uma visão turva sobre um sentimento que não se materializou.
Isilda tem mais quarenta anos do que a minha filha. No entanto, naquelas longas tardes, inventavam brincadeiras infinitas e eu criava o meu próprio recreio, saindo de casa algumas horas. Agora já não me lembro dos efeitos que essa tarde, muitas dessas que juntámos, teve em mim, mas fui melhor por isso. Porque as duas se entretinham ali com genuíno prazer. E eu procurava o meu. Foi, para todas, o início de uma longa amizade.
Isilda é uma mulher admirável. A essa tarde, que primeiro foi entregue às casinhas, juntou depois outras à nossa casa. A casa foi sempre dela e nós brincávamos nos anos mais recentes sobre o facto de ela saber mais da nossa organização quotidiana do que nós próprios. Eram na verdade duas tardes em que a nossa casa voltava a ganhar ordem e aquele cheiro a fresco das janelas abertas nos fazia gostar ainda mais de cá estar. “Onde está o meu casaco?” gritava um de nós, e, às vezes, rindo, ligávamos à Isilda, sempre tão certeira. Entregávamos-lhe um objecto partido e ela fazia magia. Uma camisola de malhas perdidas e ela devolvia-a nova. Isilda tem o seu marido, Luís, e a filha, Filipa. Convivi com eles à distância, mas sabendo que ela nunca foi uma só. Isilda chegava a esta casa às segundas e terças e eu via, pela cara dela, se estava tudo bem, se havia vontade de conversar, se as dores nas costas não tinham voltado.
Mais recentemente, o nosso grande entusiasmo partilhado era a natação e mostrávamos uma à outra o que já fazíamos, rindo por nos sentirmos miúdas, mas em corpo de mulher, sendo Isilda muito mais admirável do que eu, acordando de madrugada para vir trabalhar para Lisboa e fazendo desta e das outras casas suas. Dedicando-lhes tempo, carinho, consertando o desgaste dos dias. A nossa dinâmica implicava espreitar as plantas, ver o que tinham crescido, rirmo-nos dos peluches amontoados da minha filha, ouvindo-a a lembrar-me que, um dia, eu tinha de arrumar o meu armário. Isilda, às tantas, foi a minha mãe que já cá não estava ou a irmã mais velha que tinha sempre solução para o que se precipitava.
Um destes dias, Isilda fez uma cara séria e deixou sair em tom de lamento: “Inês, eu tenho de lhe dizer uma coisa”. Ficou séria e eu ali, na expectativa, sem diluir o meu nervosismo. Comunicou-me, então, que se iria embora porque precisava de estar a tempo inteiro na sua casa mais antiga, onde os seus ocupantes, mais velhos reclamam o cuidado dela a tempo inteiro. Porque acompanhava a situação, não me desmanchei.
Acho que fui forte perante o choque, não sabendo bem o que isso significava, por a dar como adquirida. Neste mês que passou fui começando a interiorizar que ela se ia embora e que os peluches, as plantas, a minha filha, eu e o meu marido, íamos ficar órfãos da Isilda. No último dia dela aqui eu tinha de estar fora de casa. Tinha realmente compromissos, mas não aguentaria essa despedida. Porque esse impacto, um mês depois, já era outro: foi assimilado, já eram muitas lágrimas fáceis. Todos lhe escrevemos um bilhete e eu deixei-lhe um relógio, agradecendo as horas que nos deu.
Enquanto estive fora, fui imaginando Isilda a despedir-se de cada cantinho desta casa, que foi dela também. Tudo terá sempre o dedo dela. Era surpreendente tantas vezes entrar e ver que tinha encaixado uma peça num lugar qualquer e lhe tinha trazido outro encanto. É mesmo uma sorte termos a Isilda – dissemos tantas vezes.
Depois das cinco da tarde cheguei a casa. Também ela tinha deixado o seu bilhete de despedida. Chorei, mais agarrada à minha perda do que previ. Como se chorasse por quinze anos de dádiva sem limite.
Não tenho dúvidas de que ficámos órfãos de qualquer coisa sem nome. Aliás, tem nome. É Isilda.
Hoje foi a primeira segunda-feira sem ela.
O coração ainda bate