O lado de lá

Fui pegada ao colo e embalada dentro de água. Tão simples, tão forte. Como se já tivesse estado ali. Senti que estava a nascer, senti que estava a morrer.

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"E foi como se as águas da minha vida se unissem" Jayson Hinrichsen/pexels
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Cresci com duas visões distintas do mundo. No que toca a métodos terapêuticos, o meu pai considera qualquer coisa que não seja uma consulta médica num hospital renomado “uma aldrabice”. A aldrabice é este guarda-chuva que abarca tudo o que vai da psicanálise à astrologia, passando pela homeopatia e, até, osteopatia.

Já a minha mãe sugere fazer-me reiki por telefone se digo que estou com dores de cabeça.

As duas vozes lutam cá dentro. O cepticismo tem vencido. Há muito tempo que uma amiga quer que eu leia As mulheres que correm com os lobos”. Eu tenho-a desiludido na missão de me angariar para a sua alcateia. Já tentei explicar-lhe que em mim não mora nenhuma loba. Ela insiste, diz que eu preciso de recuperar a minha ancestralidade e de me conectar com as origens, tal como ela fez. Eu recordo-a de que ela trabalha num escritório com ar condicionado, anda no ginásio e mora num condomínio em Carnaxide.

Ainda assim, há momentos em que o sussurro de esoterismo materno puxa por mim. E, por isso, quando me disseram: “Vem fazer uma sessão de aquaterapia”, eu fui. Primeiro, porque era água, segundo, porque era terapia. Terceiro, porque tenho atração por experiências diferentes. O ceticismo ainda estava a vencer quando entrei na piscina. Quase podia ouvir a voz do meu pai, como um aviso, em eco, na gravidade do Tritão da Pequena Sereia: “Aldrabice...” Mas depois, deixei de ouvir. Literalmente, porque os meus ouvidos entraram dentro de água. Fechei os olhos.

A partir daí acabou a possibilidade de explicar. E isso já diz qualquer coisa.

Fui pegada ao colo e embalada dentro de água. Tão simples, tão forte. Como se já tivesse estado ali. Senti que estava a nascer, senti que estava a morrer.

Eu sei, pareço as pessoas que experimentam psicadélicos e que trazem uma verdade comovente que leva quem ouve a pensar: “Se calhar passou para o lado de lá.” Eu naquele momento talvez tenha passado para uma espécie de lado de lá. Encolhi-me, com medo de estar com uma postura demasiado mística.

Primeiro tentei intelectualizar a experiência. Pensei em Ofélia, em Virginia Woolf, em Caronte. Nos seres aquáticos da minha vida. Depois pensei no ridículo da situação, apesar de não haver testemunhas. Uma mulher adulta de fato de banho a ser pegada ao colo dentro de uma piscina, no escuro. Depois, a água levou o ridículo embora.

Pensei no que iria fazer a seguir, no texto que iria escrever, qual seria o tom certo para falar daquilo. Pensei em escrever um poema. Pensei em contar a alguém. Pensei também no meu carro mal estacionado, pensei nas minhas filhas sem chapéu ao sol, pensei no Trump.

Depois pensei porque raio é que penso tanto. Não era tão melhor sermos assim apenas levados, apenas sem peso. Tudo igual, tudo outra vez. Chorei. Não consigo dizer porquê, consigo só dizer que senti uma felicidade quase impossível. Senti-me anfíbia. Ouvia os sons que me pareciam familiares, os sons abafados lá fora, uma voz distante e próxima. Tudo estava escuro e algumas luzes piscavam.

E foi como se as águas da minha vida se unissem. Fui chorando vários choros, ao mesmo tempo que me lembrava da minha avó a nadar sem molhar o cabelo, das minhas filhas a aprender a saltar da prancha, das aulas de surf, de engolir o cloro, da ânsia que a minha mãe visse o meu mergulho nas aulas de natação, do banho, de conversar na espuma. Do avô que dizia que ia embora e as netas a chorar na areia. E depois, muito mais atrás, muito mais longe. A exacta substância de um sonho antigo. Uma matéria onde eu deixava tudo. A água estava solidária comigo, com o que eu sentia, pronta. Tudo o que é loucura aqui fora, lá dentro era certo. Era tudo junto, a água colava. Levava embora e trazia. Eu na quantidade certa. Conduzida, mas não passiva.

Depois vim à tona, ficou silêncio.

Peguei no carro, fui pôr o chapéu às minhas filhas. Voltei a um tom terrestre. De volta às horas, às formas, aos sapatos, à crónica.

Mas não se espantem se um dia destes me virem por aí a correr com os lobos. Aúuuu

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