Sentados no escuro palco do Teatro Villaret, em Lisboa, Vítor Costa e Maria Clementina são, respectivamente Vítor e a tia Bebita, que está numa sessão de eneagrama. A mulher esbraceja, ansiosa, deitando cá para fora tudo o que a faz viver em permanente estado de ansiedade; ele vai guiando-a, tentando acalmá-la, mas com pouco sucesso. O desfecho não é feliz mas abre portas a que entre uma nova personagem, Leonilde Fortes. Ao longo de um pouco mais de uma hora, são nove as personagens que Maria Clementina — formada em comunicação social e cultural e freelancer na área da redacção de conteúdos, locuções, produção e mentoria musical — interpreta, revelando os nove tipos de personalidades que Vítor Costa, um facilitador desta técnica vai explicando ao público.
O que é o eneagrama? É uma ferramenta que não tem fundamento científico, que é usada como processo de autoconhecimento. Vítor Costa, que é um facilitador desta técnica, justifica ao PÚBLICO por e-mail, que o "eneagrama não é consensual, assim como qualquer tema que saia do conhecimento geral", mas que se baseia na "sabedoria milenar, que implica estudo, prática e aprofundamento". Durante o espectáculo — que é interactivo, uma vez que é pedida a participação do público — é perguntado quem é Claudio Naranjo (1932-2019). Trata-se de um médico, psicólogo e psiquiatra chileno, pioneiro da psicoterapia, refere Vítor Costa, acrescentando que foi este quem desenvolveu o sistema de identificação de nove tipos de personalidades — as que Maria Clementina caricaturiza em palco.
Maria Clementina avança ainda que se trata de uma ferramenta "largamente usada no mundo", em processos de coaching nas empresas e também em contexto de terapia familiar, de casal ou individual. "É, inclusive, desenvolvida pelos jesuítas como mapa de evolução pessoal e espiritual", acrescenta. Contactada a Companhia de Jesus, o gabinete de comunicação declara por escrito: "Entre muitas outras propostas, alguns jesuítas utilizam o eneagrama — identificação com um determinado tipo de personalidade — como ferramenta de autoconhecimento, de acordo com uma leitura cristã deste modelo."
A Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) não tem qualquer parecer concreto sobre esta prática, no entanto, "estando associada à numerologia reportamos ao seguinte parecer, datado de Maio de 2023", refere Patrícia Batista, assessora da OPP, partilhando com o PÚBLICO o documento que diz que a "ciência psicológica não reconhece, utiliza ou recorre em circunstância alguma à numerologia". A ordem lembra que os psicólogos "utilizam apenas abordagens, procedimentos e técnicas baseadas na investigação científica" e que as práticas que "não cumpram estes princípios ou que sejam prestados por profissionais não qualificados colocam uma ameaça à saúde pública, assim como ao bem-estar da população".
"Todos temos um lado B"
Foi em Novembro passado que a dupla deu início ao podcast Não Disfarces, cujos episódios têm uma média de duas mil visualizações. "O facto de termos recebido tanto carinho e interesse por parte do nosso público digital, logo nas primeiras semanas após o lançamento do podcast, despertou-nos rapidamente para a ideia de darmos continuidade a este trabalho de desconstrução dos nove perfis do eneagrama, no lugar onde o acting acontece por excelência, no palco", diz Maria Clementina. Com esta peça, da autoria de Maria Clementina — "sempre tive o sonho de escrever e produzir a minha própria peça", declara — e de Vítor Costa, o objectivo é chegar ao público que acompanha as personagens do podcast, através de uma "viagem mais lúdica e interactiva, uma espécie de consolidação da matéria dada", como se fosse um workshop. Mas é também uma maneira de "atrair todo um novo público", acrescenta a autora.
O espectáculo que, diz o folheto entregue à entrada do teatro, é uma "fusão entre comédia teatral e workshop imersivo, onde o cómico se entrelaça com o cósmico" leva o espectador à descoberta de "nove motivações internas distintas no ser humano, partindo das neuroses mais primárias de cada um, até às virtudes mais elevadas". As diferentes personagens que foram definidas por esta técnica vão entrando em palco, não do 1 ao 9, mas compondo uma narrativa que permite conhecer melhor cada uma e levando os espectadores a perceberem se se revêem em alguma. "Podemos aprender que somos muito frágeis e que todos temos um lado B, muito mais próximo daquilo que somos na verdade e que, na maior parte do tempo, tentamos esconder através dos nossos disfarces, em piloto automático", explica Maria Clementina, acrescentando que esta técnica permite aprender que "não há tipos de personalidades melhores nem piores" e que, com esta, se torna "muito mais simples aceitar o outro".
Os espectáculos que se ficam por cinco datas em Lisboa — as próximas serão hoje e amanhã, e dia 1 de Julho, no Teatro Villaret —, e uma no Porto — 2 de Julho, no auditório Francisco de Assis, no Colégio Luso-Francês — estavam praticamente esgotados. Vítor Costa explica porquê: "Uma grande parte do nosso público está a viver processos de psicoterapia, autoconhecimento ou desenvolvimento pessoal." No final, se o espectador sair a rir-se de si próprio, "sobretudo das suas neuroses e manhas mais sombrias, capaz de identificá-las", então a missão da dupla está cumprida, diz Maria Clementina. "Pretendemos que o espectador saia feliz e com uma sensação de leveza. A vida já é bem pesada com todos os temas que nos cercam por estes dias, no mundo", conclui Vítor Costa.