Verões quentes e invernos chuvosos produzem melhores vinhos, conclui estudo feito em Bordéus

É sabido que a qualidade do vinho varia de ano para ano, mas o que constitui um bom ano vitícola? Investigadores da Universidade de Oxford analisaram críticas ao vinho de Bordéus ao longo de 50 anos.

Foto
Jean-Luc Benazet / Unsplash
Ouça este artigo
00:00
08:26

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Não será novidade para ninguém que o clima e as condições meteorológicas que se fazem sentir a cada ano interferem com a qualidade do fruto colhido e, no caso da cultura da vinha, depois com o vinho produzido. Mas o que constitui um "bom ano" vitícola?

Investigadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, historicamente o melhor mercado para os vinhos de Bordéus, analisaram as pontuações e notas críticas atribuídas aos vinhos da famosa região vitivinícola francesa, ali logo do outro lado do Canal da Mancha, durante um período de 50 anos. E demonstram, num artigo publicado esta quarta-feira na revista iScience, como o clima desempenha um papel importante na determinação da qualidade do vinho.

Para lá da qualidade dos seus vinhos, Bordéus é um terroir conhecido pela grande variação climática ao longo dos anos. É de resto essa a razão pela qual há anos vitícolas mais famosos que outros e os vinhos dessas colheitas atingem valores mais elevados. Anos clássicos, numa região clássica. Ora, os investigadores vêm agora demonstrar (ou confirmar) que Bordéus produz vinho de "melhor qualidade em anos mais quentes, que registam maior precipitação no Inverno e em que o ciclo da videira é mais precoce e mais curto". "Condições que, com as alterações climáticas, se prevê virem a ser mais frequentes", sublinham os cientistas no artigo. "As variações climáticas afectam a qualidade do vinho em Bordéus."

Sim, o clima determina a qualidade e o sabor do vinho. Um dos aspectos que já se sabe hoje é que com o aquecimento global há tendência para as uvas perderem acidez, isso fará com que dêem origem a vinhos também eles 'quentes', menos frescos. Estão mais protegidas as vinhas em altitude e aquelas que beneficiem de outro qualquer factor moderador do clima, como a brisa do Atlântico ou outro.

“Encontrámos evidências de que os efeitos da temperatura e da precipitação ocorrem ao longo do ano – desde o aparecimento dos botões, quando as uvas crescem e amadurecem, durante a vindima e até mesmo durante o Inverno, quando a planta está em estado de dormência”, explica, citado em comunicado, o primeiro autor deste estudo e investigador do Departamento de Biologia da Universidade de Oxford Andrew Wood.

A mesma vinha pode dar origem a uvas de qualidade distinta em anos diferentes, mesmo quando nada muda na viticultura e no processo de vinificação. Só por causa das condições climáticas verificadas a cada ano. E esta é uma questão antiga, que tem ganhado novo foco nos últimos anos por causa da crise climática.

Sabe-se que a meteorologia e o clima terão impacto nas culturas, mas a ligação entre as alterações climáticas e a qualidade dos produtos agrícolas não foi ainda amplamente explorada.

Na investigação, os cientistas, quase todos de Oxford e um de Bordéus (do Instituto de Ciências da Vinha e do Vinho), combinaram dados climáticos de alta resolução com as pontuações dadas pelos críticos ao vinho de Bordéus entre 1950 e 2020. Analisaram a qualidade do vinho tanto à escala regional (ou seja, em geral, olharam para como foram os anos vitícolas na região do sudoeste de França), como a uma escala mais local, focando-se aí nas mundialmente famosas denominações de origem controladas — em francês, appellations d'origine contrôlée (AOC) —, na prática regiões geográficas bem definidas, onde as práticas de viticultura e as opções de produção de vinho estão bem balizadas. Usaram depois modelos matemáticos para testar se a qualidade do vinho era afectada por factores climáticos, como a duração do ciclo vegetativo e as mudanças de temperatura e na precipitação (assim como a duração dessas condições meteorológicas).

Ao contrário de estudos anteriores, que se focaram na fase de crescimento da cultura, este trabalho das universidades de Oxford e Bordéus analisaram o impacto do clima até no Inverno, quando as videiras estão na fase de dormência. "As culturas perenes, como a vinha, estão lá o tempo todo e, portanto, coisas que acontecem fora da fase de maturação [das uvas] também podem impactar o vinho”, diz Andrew Wood.

Porquê Bordéus? Primeiro, porque se trata de uma região onde os produtores só contam com a chuva para 'regar' as suas vinhas. Segundo, porque há muito tempo que Bordéus vê serem atribuídas aos seus vinhos pontuações críticas, ou seja, existe um vasto manancial de informação sobre a qualidade dos vinhos da região ao longo dos anos.

Para os vinhos da região foi possível analisar o tal meio século, de 1950 a 2020, recorrendo à pontuação dos merchants de vinho. Para os vinhos das AOC, os investigadores encontraram pontuações por críticos de vinho para o período de 2014 a 2020. A informação foi utilizada no pressuposto de que a crítica de vinhos, apesar de subjectiva (os críticos são, por exemplo, condicionados por saber que determinado vinho vem de uma appellation famosa), obedece quase sempre aos mesmos critérios e que quem avalia profissionalmente vinhos concorda sobre a qualidade destes, independentemente do seu gosto pessoal.

Para os autores do artigo da iScience, a qualidade é “uma propriedade não subjectiva das culturas perenes” e, como tal, poderia ser o critério para monitorizar as transformações na cultura da vinha, neste caso, ao longo do tempo.

Mais qualidade, mas vinhos mais pesados

No geral, os investigadores descobriram que a qualidade do vinho de Bordéus melhorou entre 1950 e 2020. Isso pode dever-se ao facto de, nesse período, o clima de Bordéus se ter tornado mais quente, ao uso crescente de tecnologia nas adegas e / ou ao facto de os produtores estarem a seguir tendências de consumo e a produzir vinhos que têm mais sucesso junto dos consumidores.

“A tendência, seja ela impulsionada pelas preferências dos críticos de vinho ou da população em geral, tem sido de as pessoas geralmente preferirem vinhos mais pesados, de guarda e com sabores mais intensos e ricos, maior doçura e menor acidez", comenta Andrew Wood. “E, com as alterações climáticas, em geral, estamos a ver uma tendência em todo o mundo de aquecimento, com os vinhos a ficarem mais pesados [mais alcoólicos, menos frescos]."

Pode parece estranho dizer que o consumidor quer vinhos mais pesados, mas note-se que, por um lado, o estudo termina em 2020 e que nos últimos dois a três anos tem vindo a emergir uma tendência de consumo por vinhos mais leves, mesmo nos tintos, por outro, os grandes Bordéus foram sempre vinhos a rondar os 12% de álcool. Blends de Merlot e Cabernet Sauvignon, as percentagens de cada casta nos lotes variam, lá está, em função de cada ano climático (e consoante o que cada uva aporta ao vinho) e conforme estejamos na margem direita (mais Merlot) ou esquerda (mais Cabernet) do estuário do Gironde.

O clima impacta então a cultura da vinha durante todo o ano, mesmo quando a videira 'dorme'. E, em geral, os vinhos de alta qualidade foram associados a invernos mais frios e húmidos, primaveras mais quentes e húmidas, verões quentes e secos e outonos frescos e secos.

Ironicamente, no caso de Bordéus, historicamente uma região de clima fresco a moderado, as alterações climáticas estão a produzir um padrão que corresponde a esse ideal de "ano bom", pelo que os investigadores antecipam que a qualidade dos vinhos da região aumentará nos próximos anos. "[No futuro] dado que é mais provável que vejamos estes padrões de clima mais quente, com menos chuva durante o Verão e mais chuva no Inverno, os vinhos provavelmente continuarão a melhorar, vaticina Wood.

Contudo, vem aí um "mas": isto só será verdade enquanto houver água, o que no caso de Bordéus, para já, quer dizer enquanto a água das chuvas chegar para as necessidades dos solos e, concretamente, da vinha. “O problema em cenários onde fica muito quente é a água: se as plantas não tiverem o suficiente, elas acabam por falhar e, quando as plantas falham, perde-se tudo", alerta Andrew Wood. O consenso é, portanto, em torno da "ideia geral" de que "os vinhos continuarão a melhorar até ao ponto em que [as videiras] falharem." Não é lá muito tranquilizador.

Embora o estudo se tenha centrado nos vinhos de Bordéus, os investigadores levantam a hipótese de as suas conclusões se aplicarem a vinhos de outras regiões vitivinícolas. "Testar isso é o próximo passo", dizem, no comunicado enviado aos jornalistas. Os seus métodos, acrescentam, poderiam ainda ser aplicados ao estudo do impacto da variação climática anual e das alterações climáticas noutras culturas perenes, como o cacau e o café, se estiverem disponíveis registos de qualidade para um período alargado.

Pode ser que se aplique a outras regiões vitivinícolas, mas também vamos tendo notícias de que a geografia mundial do vinho está a mudar por causa do calor, para fugir do aquecimento global. Tipicamente, a videira dá-se bem entre os paralelos 30 e 50, quer no hemisfério Norte, quer no hemisfério Sul, ou seja, onde não é muito quente nem muito frio. Mas hoje já há vinhas e produção de vinho em locais onde há uns anos isso seria impensável, da Finlândia ao Sul da Tasmânia.

Este artigo foi corrigido a 12/10/2023, na passagem sobre as castas utilizadas em Bordéus.

Sugerir correcção
Comentar