Já é possível prever o que acontecerá nos primeiros dez anos de vida de uma vinha

Pela primeira vez, é possível fazer previsões climáticas no período de um a dez anos. Sogrape foi a única empresa do sector vitivinícola a participar em projecto da Organização Meteorológica Mundial.

Foto
Na Herdade do Peso, na Vidigueira, a Sogrape já planta a vinha nova tendo por base a evolução do clima Sandra Ribeiro/Tiago Fernandez
Ouça este artigo
00:00
08:37

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Até há um ano, era muito difícil, se não impossível, fazer previsões climáticas para o futuro próximo. Isso está a mudar, depois de a Organização Meteorológica Mundial (OMM), agência especializada das Nações Unidas, ter juntado cientistas e especialistas de diferentes sectores da economia para identificar necessidades e gerar essas previsões à distância de um a dez anos. A Sogrape foi a única empresa do sector vitivinícola – e mesmo do agro-alimentar – do mundo a participar no projecto do World Climate Research Programme (WCRP), que é financiado pela OMM e originou já a publicação de um artigo científico na revista Frontiers in Climate.

Que problema está na origem do WCRP Grand Challenge on Near-Term Climate Prediction? “Há um período de tempo entre o fim da previsão do tempo inicializada e o início da projecção climática não inicializada, tipicamente entre um e dez anos, em que a previsibilidade era muito baixa. É o que se chama near-term em inglês”, começa por explicar o director de Investigação e Desenvolvimento da Sogrape, António Graça.

Ora, como nota de imediato António Graça, em viticultura, dez anos é precisamente o tempo que, em média, uma vinha precisa para “atingir o equilíbrio fisiológico” e “entrar em velocidade de cruzeiro em termos de produção”. Uma vinha nova produz uvas ao cabo de três ou quatro anos. E “até ao oitavo, décimo ano, o seu sistema radicular está ainda a estabelecer-se”. ”Calha precisamente dentro do período em que nós não conseguíamos ter previsões utilizáveis. Logo aqui, tem uma enorme importância.”

Mais, como podemos ler no artigo científico de que António Graça é co-autor, Aplicações Recentes e Potencial de Previsões Climáticas de Curto Prazo (Interanuais a Decadais), “é suposto uma vinha durar várias décadas, mas a sua longevidade é fortemente condicionada pelo clima, tornando as previsões decadais potencialmente muito relevantes. A capacidade de prever temperatura e precipitação melhoraria muito a gestão de risco para tal investimento. A capacidade de estimar probabilidades de frequência de eventos extremos que causam, por exemplo, stress hídrico nas videiras melhoraria a gestão da propriedade e mitigaria riscos.” No artigo, é sublinhado que um sector do vinho (mais informado e) mais resistente usará menos pesticidas e precisará de menos água.

No projecto da OMM, identificaram-se estas e outras aplicações de valor acrescentado para as previsões near-term em viticultura, mas também noutras áreas. Dos seguros ao transporte de mercadorias (ambos poderão contar em breve com previsões de ocorrência de furacões no Atlântico), passando pelas pescas (para quem serão valiosíssimas as previsões de stocks, migração de espécies e disponibilidade). O objectivo era desenvolver “serviços climáticos” (como as duas previsões já produzidas pela OMM) que trouxessem “benefícios aos diferentes sectores económicos”, explica Graça.

Foto
António Graça é co-autor do artigo científico "Aplicações recentes e potencial de previsões climáticas de curto prazo (interanuais a decadais)" publicado em 2022, na sequência de um projecto da Organização Meteorológica Mundial Anna Costa

A previsão do WCRP produzida em 2022, para a “evolução do índice de secura até 2025”, e a sua actualização, já este ano, resultam já das necessidades indicadas por António Graça, enólogo de formação, e outros especialistas mundiais. E serão no futuro importantes ferramentas de apoio à decisão de viticultores e produtores de vinho, produto cujo valor depende muito da qualidade (e esta da meteorologia e do clima).

A Sogrape não só foi a única empresa de vinhos a participar, mas também era a única empresa do agro-alimentar, sector em que também se estudou a cultura dos cereais, “commodities de importância estratégica a nível mundial”, pelas quais se pronunciaram diferentes organizações governamentais que já trabalham o seu potencial de produção, nomeadamente do trigo.

O projecto teve um financiamento global de cerca de 578 mil euros em 2020, 761 mil euros em 2021 e 588 mil euros em 2022, entre financiamento directo da OMM, apoio de outros organismos ligados ao clima, como o norte-americano NOAA (a agência governamental para o oceano e a atmosfera) e contribuição voluntária de diferentes países.

Tantas decisões numa só

A decisão a tomar pode ser sobre a localização ideal para plantar uma vinha nova, sobre a escolha de castas (e, mais importante, “a forma de tratar” essas castas: que porta-enxertos, que sistema de condução de vinha e que micro-terroirs são os mais adequados?) ou sobre a irrigação. A preocupação das empresas pode até ser de outro nível. “A erosão é um problema ou não? Se é um problema, como é que vamos controlar a erosão? Vamos precisar de protecção face a temperaturas muito elevadas? Ensombramento, redes, etc.? Tudo isto são decisões a tomar no momento da plantação.”

“Com os resultados deste projecto, começamos a ter, pela primeira vez, uma previsibilidade que, não sendo a ideal, começa a ser utilizável”, sublinha António Graça. A informação mais valiosa em viticultura será sobre temperaturas, disponibilidade de água e humidade/secura, mas também estas previsões podem ser sobre o vento, por exemplo – “porque, quando a vinha é mais novinha e os tecidos são muito tenros, a videira parte-se com facilidade sob ventos fortes”.

O que dizia a tal primeira previsão near-term para o período 2022-2025 (um “protótipo”, “para o mundo inteiro”, mas com uma “uma resolução baixa, de 30 ou 35 quilómetros quadrados”​) era que a aridez ia aumentar na bacia mediterrânica, de uma forma geral, um cálculo que veio confirmar o que diziam outras previsões, a 30 anos e produzidas por volta do ano 2000. “Já indiciavam um aumento da aridez na bacia mediterrânica e, no caso de Portugal, sobretudo nas regiões de clima mediterrâneo, Douro e Alentejo”, recorda António Graça.

Curiosamente, na Actualização Global Anual ao Clima da Década 2023-2027 (Global Annual to Decadal Climate Update 2023-2027 em inglês) já não surge o índice de aridez. Mas ficamos, por exemplo, a saber que: nos próximos cinco anos, há 98% de hipóteses de virmos a ter um ano mais quente do que o recordista 2016, há igual hipótese (98%) de que a temperatura média seja superior à média dos últimos cinco anos (2018-2022); de Maio a Setembro a pluviosidade será reduzida na Amazónia e na Austrália, mas choverá acima da média de 1991-2020 no Sahel, no Norte da Europa, no Alasca e no Norte da Sibéria; e o Norte da Eurásia terá precipitação acima da média de Dezembro a Fevereiro.

Seja como for, alerta António Graça que, ao trabalhar com este tipo de projecções climáticas, “há sempre duas dimensões que é preciso considerar em termos da granularidade da informação: a espacial e a temporal”. E, no que diz respeito à primeira, a dimensão geográfica: “Quando temos uma previsão em que um ponto representa 300 quilómetros quadrados, temos uma previsibilidade aceitável. Quando passamos para um ponto que representa 11 quilómetros quadrados, essa previsibilidade cai a pique, e abaixo de 11 quilómetros quadrados praticamente não há previsibilidade alguma.”

A Sogrape, que produz vinho em cinco países, não contribuiu directamente com dados para o WCRP Grand Challenge on Near-Term Climate Prediction​, embora os dados das suas estações meteorológicas (24 só em Portugal, “de Barcelos à Vidigueira”) tenham sido indirectamente utilizados, já que são cedidos para uma das maiores bases de dados mundiais de observações meteorológicas, gerida pelo Instituto Meteorológico Real dos Países Baixos. A empresa colabora há mais de dez anos com os principais centros de climatologia mundial em vários projectos científicos, com destaque para o Euporias (cujo networking levou ao convite para o projecto do WCRP) e o MED-Gold.

Esse historial ajuda a compreender a abrangência das medidas e dos ensaios que a empresa tem vindo a fazer na vinha como forma de mitigar, já e no futuro, os efeitos das alterações climáticas. Presente em seis regiões vitivinícolas portuguesas, a Sogrape tem 600 hectares de vinha em viticultura de montanha (Douro, Bucelas e Portalegre) e, preocupada com a erosão do solo, está a fazer o mapeamento dos fluxos de água nas encostas com alta precisão e a adaptar os sistemas de drenagem nesses terrenos. Também está a ensaiar castas mais resilientes, trazidas de outras geografias, na Vidigueira. E já planta vinhas novas com material policlonal.

Segundo António Graça, os climatologistas envolvidos no projecto da OMM ficaram admirados ao darem conta “de que, dentro do sector agrícola, a indústria vitivinícola se encontra muito mais avançada do que outras na compreensão de como o clima afecta o valor do produto” e já estuda a matéria “há uns bons 50 anos”.

“Não só ficaram admirados como imediatamente quiseram utilizar isso. Porque é, de facto, muito importante para eles, transforma o sector vitivinícola num role model para os outros.” E para aqueles que não têm o historial nem os recursos de uma Sogrape, nota Graça, há boas notícias: o Copernicus (Programa de Observação da Terra da União Europeia) “está a trabalhar activamente no sentido de ter, cada vez mais, produtos acessíveis a leigos”.

Sugerir correcção
Comentar