“Não quer dizer que vá ser sempre assim e que em 2024 as vindimas voltem a ser precoces”
Investigador em Ciência e Microbiologia do Vinho e coordenador da pós-graduação em Enologia da Católica, José António Couto explica como está a crise climática a afectar a produção de vinhos.
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José António Couto é professor na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa, investigador nas áreas de Ciência Alimentar e Ciência e Microbiologia do Vinho e coordena desde 2017 a pós-graduação da Católica em Enologia. Falámos com o especialista sobre como estão as alterações climáticas a condicionar a produção de vinhos.
A antecipação generalizada das vindimas no país explica-se com as alterações climáticas?
Temos observado essa tendência nos últimos anos para as vindimas serem mais cedo. E toda a gente relaciona este facto com as alterações climáticas. Não há como fugir desse tópico. Mas temos também que relacionar isto com as condições climatéricas específicas do ano. E, este ano, as temperaturas durante o Inverno foram relativamente altas e choveu bastante. Depois no Verão as temperaturas foram relativamente altas. E as temperaturas relativamente altas e o facto de existir água no solo apressaram a maturação das uvas.
O ciclo vegetativo da videira arrancou mais cedo, é isso?
Sim. Verificaram-se, de facto, condições muito favoráveis para termos um ciclo vegetativo mais rápido da videira. No entanto, isto não quer dizer que no próximo ano as vindimas sejam exactamente nestas datas. Podem ser mais tarde, as condições específicas de cada ano vão influenciar muito o ciclo vegetativo da videira. Outro aspecto importante e é o facto de não se terem verificado aqueles picos de calor.
Mas o Dão, por exemplo, ainda há dias sofreu com esses picos, com os escaldões. No espaço de um mês teve dois períodos de escaldão, três dias há um mês e outros dois há 15 dias.
Nunca podemos generalizar. Não se verificaram de uma forma generalizada, o que permitiu que a maturação das uvas tivesse decorrido de uma forma tranquila, sem interrupções. Se no próximo ano acontecerem esses picos de calor, esses escaldões [de forma generalizada], então vai ser uma vindima muito mais difícil. Não sabemos o que vai acontecer no próximo ano. É o tal [clima] ioiô.
Fala-se muito dos efeitos das alterações climáticas na vinha. E nos vinhos, já na adega?
Se formos comparar com vinhos que eram produzidos há uns anos atrás, assistimos a uma maior quantidade de vinhos com 14% e 15% de álcool. Isso choca um bocadinho com o que consumidor [de hoje] quer. E os produtores de vinhos e os enólogos estão a lutar contra esse aumento da graduação alcoólica nos vinhos, que, de facto, é um efeito do aquecimento global. As leveduras [que fermentam os mostos] têm mais açúcar para fermentar, portanto, dão origem a vinhos alcoólicos. Mais açúcar no mosto pode, inclusive, trazer alguns problemas de arranque de fermentação. É uma situação complicada. E uma coisa que os enólogos querem garantir é que a fermentação seja completa.
Um dos efeitos que já se antecipa da crise climática nos vinhos é a perda de acidez.
Sim, também podemos falar de um aumento do pH e o pH é muito importante para o equilíbrio químico. Quanto mais elevado é o pH, menos ácidos e menos estáveis são os vinhos, até em termos microbiológicos e isso implica também a utilização do sulfuroso, que está relacionada com o pH dos vinhos. A maior parte dos vinhos tem um pH ali entre 3 e 3.6. Agora, existem vinhos com pH 3.8, pH 4, são vinhos menos ácidos. Quanto mais elevado for o pH, menos protegido está o vinho de ataques microbiológicos que possam acontecer na fermentação e até depois, durante o envelhecimento.
Globalmente falando, a geografia do vinho também está a mudar, por causa das alterações climáticas.
Temos uma faixa de latitudes no hemisfério Norte e uma faixa de latitudes no hemisfério Sul [entre os paralelos 30 e 50] onde encontramos as principais regiões produtoras de vinho. Olhando para o hemisfério Norte, que é o que nos interessa mais, a parte do Sul dessa faixa de latitudes está a ser mais afectada. E começamos a ver plantação de vinhas em regiões em que há alguns anos seria impensável. Inglaterra, Bélgica, Suécia. Há dois anos estive na Dinamarca e visitei duas ou três empresas produtoras de vinho. A Finlândia creio que também está a produzir. E no hemisfério Sul há quem esteja a apostar nas regiões sul da Tasmânia. Procuram zonas mais favoráveis para a produção de vinho. Está a acontecer uma relocalização, digamos assim, da produção.
Também há uma aposta em castas mais resilientes?
Sim, em experimentar castas, castas que não são muito habituais numa determinada região. E há variedades híbridas que estão a ser produzidas e utilizadas na Alemanha e em França também. Conferem uma resistência maior às videiras e permitem à indústria dos vinhos utilizar, à partida, menos pesticidas e fungicidas. São as variedades designadas de PIWI. E já existem vinhos feitos com esses híbridos. São vinhos correctos, mas demasiado ácidos, um pouco agressivos na boca. Se a temperatura continuar a subir, se calhar, daqui a dez, 20 ou 30 anos, esse aspecto já será mitigado.