Sabores de Angola, uma viagem através das receitas, que são memórias

Em 1948, a mãe de Margarida Pereira-Müller — “uma óptima contadora de histórias e uma óptima cozinheira” — embarcou rumo a Angola, cheia de cheiros e de sabores. “A cozinha é feita de memórias.”

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Margarida Pereira-Müller, autora do livro Sabores de Angola Rui Gaudêncio
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Há um bacalhau que se sente injuriado por ser cozinhado em azeite, umas lulas à viúva preparadas com a tinta e até peixinhos mulebi-lebi. Há bifes de ímpala, calulu de carne seca, frango piruca, guibulo e kissuto rombo. Há farofa, finge de bombó, kizaca com muamba de ginguba, maxanana, quitando e pirão de azeite doce. Tem que haver pé de moleque e "histórias dentro de histórias". A história de Angola — onde tudo acontece neste Sabores de Angola —, da Fazendo Girassol, da fruta ("grande capítulo" reservado a este "prodígio da natureza") e muito da própria essência de M. Margarida Pereira-Müller, a contadora.

Se em Setembro de 1948 a sua mãe, ribatejana, "casada de fresco" com um alentejano, deixou a sua querida Lisboa e embarcou "num grande paquete" rumo a Angola, onde encontrou "um mundo todo novo", 75 anos depois Margarida tinha que transmitir algo desses cheiros, comidas e pessoas que não lhe saem da memória. "África marca qualquer pessoa que por lá passa. Angola, da terra vermelha, jamais saiu dos nossos corações", escreve a autora desta publicação independente, que muitas vezes lá voltou, solo fértil, "terra de mistério antigo" onde, como escreveu Maria Archer ("Angola Filme"), tudo se cria e tudo prospera, "desde o café ao trigo, desde a magnólia às violetas".

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A capa é da autoria do artista plástico Policarpo Brito DR

"A minha mãe era uma óptima contadora de histórias e uma óptima cozinheira. E passou às três filhas uma paixão muito grande por África", diz à Fugas numa conversa telefónica rasante pela cozinha angolana, largamente influenciada pela portuguesa e pelo contacto com outros povos e onde tudo se aproveita, raiz, folhas, frutos, cascas... "Por exemplo, da mandioca come-se o tubérculo em si, cozido, guisado, frito — crua só para as mulheres lactantes para uma melhor lactação. É igualmente moído para fuba (farinha), com o qual se prepara não só o funde como a farofa ou o chikuanga, uma espécie de broa servida em folhas de banana, típica da região noroeste. Com as folhas da mandioca faz-se, por exemplo, a kizaka (ou quizaba) com azeite e pasta fresca de amendoim. As folhas pisadas servem também como remédios para as feridas (...) Com o milho, fazem-se igualmente sobremesas como o matete e bebidas alcoólicas como a kissângua ou ocissangua."

"A ida dos meus pais e a sua vivência lá fizeram de nós pessoas de olhos muito abertos para o mundo e para o que os outros dizem e comem. Quando viajo ando a conhecer histórias, comida e cozinhas, ando a investigar e a passar tudo para o papel para as gerações futuras, para os nossos filhos e netos saberem como foi."

Natural de Portalegre, Margarida Pereira-Müller já leva uns trinta livros de gastronomia publicados. "A cozinha é feita de memórias. São esses sabores que nos acompanham durante toda a vida e que nos fazem recuar até aquele lugar quando precisamos desse conforto", diz.

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"África marca qualquer pessoa que por lá passa" Rui Gaudêncio

Trata-se de "pôr em papel" — o artista plástico Policarpo Brito criou não só a capa (uma angolana a bater funje nas cores quentes de Angola) como fez os desenhos a carvão que ilustram o livro — grande parte das receitas familiares, a cozinha feita com óleo de palma, "sobretudo o picante" ("Sempre se comeu picante lá em casa, porque o meu pai era fã de gindungo; tínhamos sempre um frasquinho na despensa de azeite e malaguetas") na panela e no prato. "Não podemos esquecer o nosso passado. O que somos e o que trazemos nos genes. Gerações e gerações passadas", sublinha a autora, memória de elefante — e até eles, maltratados durante a Guerra Civil, se recusavam voltar ao Gorongosa. "Trazemos nos genes uma bagagem milenar que nos faz ser como somos e comer o que comemos."

Hoje, muitas idas e vindas depois, Margarida Pereira-Müller "viaja" desta vez "de mão dada com a Fazenda Girassol", projecto fundado em 2003 no Norte de Angola por dois engenheiros agrícolas que em duas décadas se transformou num empresa exportadora de frutos tropicais com 1680 trabalhadores — principal empregador da província do Zaire, não considerando o sector petrolífero — e orgulhoso contribuinte para a "auto-suficiência alimentar de Angola".

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