O sorvete Ski nasceu na Covilhã há 74 anos. E continua a deliciar as Beiras

O negócio dos Cardona, desde 1949, vai na 4.ª geração. Aos Gelados Ski não faltam fãs ou estrada: vão em itinerância de Fevereiro a Novembro. É gelado do Inverno ao Outono. Culto: morango e baunilha.

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Susana Ferreira e um dos famosos sorvetes de morango e baunilha paulo pimenta
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Há quem regresse a Portugal na expectativa de comprar um dos Gelados Ski. Outros esperam, ansiosamente, uma visita dos carrinhos e dos guarda-sóis vermelhos e brancos, que chegam desde a Covilhã. E há ainda quem não olhe ao conta-quilómetros para comer este “tradicional sorvete” nos concelhos da Beira Interior e da Beira Alta. De Fevereiro a Novembro, vale tudo para recuperar o sabor do morango envolvido na baunilha, uma fusão que marcou os Verões daqueles que cresceram na região, uma sensação transversal às diferentes gerações.

Uma história de sucesso em composição desde 1949, entre feiras, festivais de folclore e desfiles etnográficos, procissões e jogos de futebol ou eventos tauromáquicos. Tudo à conta da ambição dos irmãos Cardona, que juntaram o sobrinho ao projecto e formaram a sociedade Cardona & Cardona. Nas primeiras décadas, auxiliados na produção por uma máquina de refrigeração à manivela, os três saíram para a rua com três carrinhos vermelhos e com a missão de conquistar o paladar popular, uma sensação com o custo de cinco tostões. E o negócio foi vingando, de boca em boca, até que, na segunda metade do século XX, a Covilhã era já um lugar de outros encantos, além de A Lã e a Neve, clássico do escritor Ferreira de Castro.

Quem nos conta a história é Delmira Cardona, a herdeira do negócio, que, com o pai — o membro mais novo do trio Cardona & Cardona —, aprendeu as técnicas e, em 1976, quando regressou de Angola com o marido, João Fazenda, inaugurou a segunda geração do projecto. Ao PÚBLICO, a professora aposentada, de 69 anos, começa por explicar que a mudança de gestão proporcionou um novo nome para a marca — Gelados Ski — em referência à prática de esqui na serra da Estrela. Nos anos seguintes, a fábrica migrou para Dominguizo, uma pacata freguesia da Covilhã. Ainda assim, sublinha a mestre, o nome e a “casa” podem mudar, mas a essência permanece intacta.

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João Fazenda, acompanhado pela máquina de refrigeração que descreve como "a melhor" Paulo Pimenta

Delmira tem os músculos bem recordados das voltas da receita sagrada, muitos anos descrita pelo pai e pelos tios. Aparentemente simples — “leite, morango ou baunilha, água e pouco mais” —, a receita contém pormenores, alguns secretos, que conferem às bolas dos sorvetes uma cremosidade distinta e uma solidez duradoura. “Mas já lá vamos!”, adia João, enumerando outra característica que perdura no tempo. “O vermelho e branco do carrinho [e do guarda-sol] é inconfundível e serve de íman”, comenta, enquanto eleva a voz rouca sobre o persistente chiar que ecoa pela fábrica, onde emana o aroma inconfundível da baunilha e do morango. Apronta-se a esclarecer que o ruído parte da máquina de refrigeração responsável pela suprema consistência dos sorvetes, a descendente da máquina à manivela.

Este é um dos segredos que João, de 73 anos, não receia partilhar; prefere, até, ostentar e gabar a “peça de museu”, há décadas descontinuada no mercado. O batimento “mais lento” da única espátula faz a espera compensar pela densidade que confere ao creme, e porque permite adiantar os próximos preparados (morango ou baunilha com o leite) com a devida calma.

“As máquinas modernas são mais rápidas, mas menos consistentes. E as marcas industriais juntam mais ingredientes estabilizantes e produtos para evitar cristais de gelo, por exemplo. Nós não queremos nada disso, o nosso é natural”, argumenta, enquanto oferece um sorvete, servido directamente da máquina.

Por estes dias, Susana Ferreira é responsável pela confecção do stock para Outubro e Novembro Paulo Pimenta
Por estes dias, Susana Ferreira é responsável pela confecção do stock para Outubro e Novembro Paulo Pimenta
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Por estes dias, Susana Ferreira é responsável pela confecção do stock para Outubro e Novembro Paulo Pimenta

No frio da arca estão os segredos

Agora sim, é hora de visitarmos a sala do lado, a casa das máquinas, um lugar que tem tanto de museu como de linha de produção. Junto à aclamada máquina exclusiva, há uma outra, que outrora produziu cones, e duas mais recentes, para facilitar o processo de confecção. Do outro lado, quase duas dezenas de arcas. Pelo meio, e sem tempo a perder, está a atarefada Susana Ferreira, por estes dias responsável pelo stock de Outubro e Novembro, o derradeiro para este ano.

Apenas há três meses na fábrica, já assimilou os pormenores da receita: retirar a massa das máquinas de refrigeração e levá-la à arca; introduzir novos preparados nas máquinas e dedicar-se ao envolvimento dos próximos. Uma dinâmica que incorpora as técnicas sagradas e minuciosas que conferem à massa a reconhecida consistência e o sabor distinto. Está tudo relacionado com a instalação na arca, as horas e a temperatura a que a massa deve ser conservada. Mas, os pormenores cruciais, como avisa Susana, entre risos, estão circunscritos às paredes da fábrica.

“Se gostou de um sorvete tirado da máquina, não imagina quando provar estes, servidos na hora, tirados do frio, uma combinação perfeita”, remata Susana.

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A cremosidade dos sorvetes dos Gelados Ski fazem furor entre Fevereiro e Novembro Paulo Pimenta

“É uma questão de tradição e hábito”

O negócio vive meses de estabilidade, depois do vazio durante a pandemia. João, contabilista há décadas, rejubila ao destacar que são os clientes quem procura a marca, de tal forma que 50 arcas espalhadas por cafés e restaurantes da região estão reservadas para os gelados também ali produzidos. E esgotam como os sorvetes nas vendas de rua? “Não”, assinala Delmira, abanando de imediato a cabeça. Apesar da variedade de sabores, a venda popular é um êxito exclusivo dos sorvetes.

“Um dia, decidimos tentar vender também gelados. Ficaram-nos caríssimos e praticamente não se vendeu. Veio um carrinho com os tradicionais sorvetes e esgotou”, relata a mestre.

“É uma questão de tradição e hábito”, interrompe Pedro Fazenda, o mais velho dos três filhos do casal e um dos herdeiros dos Gelados Ski. Aos 54 anos, e habituado desde criança a comer as bolas do sorvete em malgas de caldo verde, Pedro garante que o prazer provocado pelo sorvete gerou um vício regional, despertado no momento em que se vislumbra o icónico carrinho e o guarda-sol vermelho.

“Chegamos pelas 8h30 ao mercado do Fundão ou do Sabugal, por exemplo, e as pessoas vêm comer os nossos sorvetes como quem toma o café, é algo que fazem por rotina”, relata. Então na Covilhã, acrescenta, a afeição é inevitável, uma vez que a sua geração — tal como outras — viveu a rotina de, geralmente nos “anos de liceu” e de universidade, vender sorvetes com os amigos e “ganhar algumas coroas para ir passar férias”.

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Pedro Fazenda, João Fazenda e Delmira Cardona Paulo Pimenta

Num “bom dia de Verão”, sete carros garantem a venda de, pelo menos, 1400 sorvetes. Horas antes, na alvorada, enquanto alguns voluntários picam o gelo, para formar um cubo no depósito do veículo, outros instalam a massa no depósito, e, de seguida, ordenam os carrinhos dentro do furgão que os levará até à multidão. Depois, resta desfrutar da azáfama de vender, compor os sorvetes, gerir o tamanho das bolas consoante o depósito restante e esperar que a fama dos Gelados Ski continue a cair nas boas graças dos populares.

“Há fenómenos que não consigo explicar”, diz João, sorridente, olhando para Delmira, que já adivinhava a história que o marido tinha na ponta da língua: “Num dos últimos fins-de-semana, estivemos na Guarda, onde choveu intensamente. Acha que as pessoas se foram embora? Ficaram em fila, de guarda-chuva aberto”, conta, com a voz entre a felicidade e a emoção. A fama que passa de boca em boca já valeu convites para os Gelados Ski se promoverem em programas televisivos, um passo que o casal opta não dar. Além disso, a força da marca naquelas regiões já motivou algumas abordagens quanto à compra da marca. Mas, como declara Delmira, a resposta será sempre: “Não! Não está para venda”.

Em itinerância até Novembro

Mais preocupados com a terceira e quarta geração dos Gelados Ski do que propriamente com a inflação — uma vez que o preçário do sorvete não vai além dos dois euros e meio desde a pandemia —, os entrevistados garantem, em uníssono, que este é um negócio sustentável, mesmo com o interregno entre Novembro e Fevereiro.

O filho mais velho de Pedro, Gonçalo, segue também os passos do “bisavô Cardona” e, aos 23 anos, regressa à Covilhã durante o Verão para liderar as vendas em “regiões chave” da Beira Beira Interior, como sublinha com orgulho o avô João.

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João Fazenda, de 74 anos, gere a marca com a esposa desde 1976 Paulo Pimenta

“Orientou o pessoal, fez as escalas, orientou as viaturas, conhece os locais e vende. [O negócio] Estará bem entregue”, descreve. Por agora, no imediato, será Pedro a liderar a continuidade dos Gelados Ski, acrescenta Delmira, enquanto fixa o olhar no filho.

Entre Outubro e o primeiro dia de Novembro, os derradeiros sorvetes do ano serão vendidos nos concelhos da Guarda, Fundão e Mangualde. A itinerância de 2024 será inaugurada, em Fevereiro, nas vendas do queijo e de enchidos, nos concelhos de Celorico da Beira, Trancoso, Pinhel e Manteigas. E, assim sendo, faça calor ou frio, para pôr à prova “o verdadeiro e tradicional sorvete” é estar de olho no clássico carrinho e guarda-sol vermelho e branco e logo de seguida é deslizar até à mais que certa fila.

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