O tempo encolheu o avô

Um avô contido nas palavras, mas que sabia todas as respostas. O tempo fê-lo minguar. Para o neto, será sempre grande. Imenso.

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“O meu avô era muito calado e muito sério. Vivia numa casa pintada de azul que de um lado tinha um pomar e do outro um campo de trigo dourado” Catarina Silva
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“Lembro-me muito bem da primeira vez que fomos ver o mar” Catarina Silva
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“Achei estranho porque ele nunca tinha precisado de ajuda antes. Quando cheguei ao pomar, vi-o ao longe, em cima de um banco e de braços esticados” Catarina Silva
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“Dessa vez, pareceu-me mesmo pequenino. Antigamente, o cadeirão não tinha espaço para tanto avô, mas agora parecia engoli-lo quase por inteiro” Catarina Silva
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Capa de O Avô Minguante, edição Planeta de Livros Portugal para Pingo Doce – Distribuição Alimentar, SA Catarina Silva

De nome Mário, o avô desta história colhe laranjas e lê poesia. Fora carteiro e marinheiro. O neto descreve-o assim: “O meu avô era muito grande e muito alto. Tinha braços tão longos que um dia lhe perguntei se poderiam dar a volta ao mundo. Respondeu-me que o mundo andava tão pequenino que talvez até fosse possível.”

Respondia a tudo o que o neto lhe perguntava, excepto no dia em que evitou dizer-lhe o que tinha feito em África: “A esta pergunta o meu avô não respondeu logo. Guardou devagar o mapa por entre as páginas de um livro. Olhava para mim, ainda mais sério do que o costume, quando me disse que em África não tinham feito nada de bom. Pelo silêncio que se seguiu, percebi que era melhor não fazer mais perguntas sobre as viagens e as marés.”

Com o avançar do tempo, à medida que o menino crescia, o avô parecia encolher. “Antigamente, o cadeirão não tinha espaço para tanto avô, mas agora parecia engoli-lo quase por inteiro (…) Disse-me que todos os avós são minguantes porque todos os netos são crescentes e é nesse cruzamento que se encontram tão bem. Apertei-lhe a mão com força e quis ficar ali para sempre. Queria que o meu avô fosse aquele avô para sempre.”

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“Contou-me que os avós parecem grandes quando os netos precisam que se pareçam grandes e que têm as respostas todas quando os netos são só perguntas” Catarina Silva

Um livro terno sobre o avançar do calendário, sobre livros e palavras e ainda sobre as relações especiais entre avós e netos.

O Avô Minguante não é o resultado de uma experiência específica com um avô, mas sim uma colagem que construí com base em referências indirectas que tenho dessa relação, por falta de ter tido a oportunidade de experienciar essa palavra, isto é, de ter conhecido os meus avôs. É a história de uma relação imaginada entre um avô e um neto e, no fundo, um conto sobre a passagem do tempo e sobre a forma como significamos as nossas palavras”, descreve por e-mail a autora deste texto vencedor da 9.ª edição do Prémio de Literatura Infantil do Pingo Doce, Daniela Leitão.

Natural de Almada e licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, diz ainda: “Este avô e este neto têm uma relação muito especial, que gira em torno dos livros, das histórias de vida do avô e das memórias que os dois constroem em conjunto. É nesse entendimento mútuo que ambos encontram serenidade no confronto inevitável com a passagem do tempo e o ciclo onde uns crescem e outros minguam.”

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“O meu avô ensinou-me que a poesia é o que acontece quando queremos falar mas não queremos dar grandes explicações” Catarina Silva

Pretende então com este livro “relembrar-nos que é nas histórias que ouvimos e nas memórias que protagonizamos que damos significado às nossas palavras, de tal forma que elas se tornam só nossas e, por isso, resistentes a tudo e impossíveis de desaparecer”.

Diz ter esta narrativa guardada há muito tempo: “Queria acima de tudo que a história que escrevi pudesse ter uma vida para além da vida que tem em mim.” Muito contente com a edição final do texto, não consegue imaginá-lo de outra forma. E louva o trabalho da ilustradora, Catarina Silva: “A Catarina conseguiu captar maravilhosamente a mensagem do texto e vê-lo reescrito pelo seu olhar sensível e talentoso deixou-me muito emocionada.”

Sobre si própria, recorda: “Sou uma pessoa para quem as histórias habitam as suas memórias de infância mais felizes. A minha mãe apresentava-me muitos livros e o meu pai lia-me uma história todas as noites. Foi um ritual que durou alguns anos e que me levou a conhecer muitas histórias, a repetir a leitura de muitas outras e, em última instância, a desenvolver uma relação muito emocional com os livros. Foi na partilha oral de histórias e na leitura que surgiu a primeira invocação para o sonho da escrita.” Daí a dedicatória feliz: “À minha mãe, que me ensinou os livros. Ao meu pai, que mos leu.”

Celebrar o primeiro livro

Catarina Silva, também vencedora do prémio pela ilustração (são 25 mil euros para cada uma), diz ao PÚBLICO que se identificou logo com o texto: “É um texto muito bonito e sensível que fala sobre a finitude do ser humano e da forte relação de neto e avô. Também eu sou neta de uma avó que considero muito minha amiga e que vejo ficar mais pequenina com o passar do tempo.”

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“O meu avô chamava-se Mário. Antes de o conhecer, sei que foi muitos Mários. Foi Mário, o carteiro, Mário, o marinheiro” Catarina Silva

À pergunta sobre se foi fácil ilustrar a história, responde: “Não diria fácil, eu ainda estou a começar o meu caminho neste mundo da ilustração, ainda tenho muitos medos e inseguranças e ainda estou à procura e a experimentar linguagens gráficas.”

E diz ter-se divertido: “Assim que cheguei à linguagem que queria e que soube que tinha vencido a fase de ilustração, comecei logo a trabalhar as imagens com muito afinco, fiquei muito entusiasmada, então trabalhava de manhã à noite, as imagens foram surgindo e o livro foi-se construindo assim, fluiu bem.” E acrescenta: “A Daniela deu-me muita liberdade e confiou no meu trabalho, isso foi importante para mim.”

Ainda que pudesse, não alteraria nada ao trabalho feito, mesmo se considera que “há sempre coisas que com o passar do tempo vamos encontrando e que podiam ser alteradas ou melhoradas”. No entanto, conclui: “Foi o nosso primeiro livro e devo celebrá-lo como tal e sentir orgulho por ser o primeiro — não alteraria nada agora.”

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“Quando começamos a envelhecer, percebemos que afinal não sabemos tudo, mas o que sabemos queremos partilhar com quem não sabe ainda nada” Catarina Silva

Formada em Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, tem desenvolvido projectos na área de cenografia e figurinos, movimento e performance. Mais recentemente, descobriu “um enorme carinho pela ilustração, pelos álbuns ilustrados e pela cerâmica”.

Neste trabalho, usou técnica mista, fez as composições a lápis e depois trabalhou a cor digitalmente.

Sobre os planos para aplicar o dinheiro ganho, discorre: “São tempos difíceis os que estamos a viver agora. Certamente que o dinheiro vai dar muito jeito para a vida acontecer e também gostava de investir uma parte em livros de artistas que me inspiram e material para conseguir produzir mais trabalho e projectos.”

Segundo a organização do prémio, “as oito obras previamente premiadas traduziram-se em mais de 149 mil livros lidos por milhares de crianças”. Para esta edição, houve cerca de 4 mil candidaturas, repartidas pelas categorias de texto e ilustração”. Títulos premiados nas anteriores edições, da mais antiga para a mais recente: De onde Vêm as Bruxas?; Orlando O Caracol Apaixonado; O Meu Livro Tem Bicho; Há Monstros no Túnel; O Narciso com Pelos no Nariz; O Protesto do Lobo Mau; Leituras e Papas de Aveia; Assim como Tu.​

Quanto ao avô Mário e a muitos outros, mesmo minguantes, continuarão enormes na memória dos netos.

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