O eu que nós fomos
O que fica do que passa — e o que não. Crescemos e deixamos lá atrás muito do que fomos e queríamos ser. Neste livro, uma mulher conversa com a menina que foi.
Um diálogo entre uma mulher que se veste de preto e uma menina que se veste de vermelho. As falas de cada uma reproduzem as cores dos respectivos vestidos. “Eu sou grande”, diz a mulher. “Eu sou pequena”, diz a menina. “Eu sou muito ocupada” (mulher). “Eu brinco até cair para o lado” (menina).
No final destes curtos diálogos descritos em cada página, a menina aconselha a mulher, questionando-a sobre o que imagina fazer-lhe falta. Diz-lhe, por exemplo, “talvez o teu Eu precise de tempo livre?”, depois de esta afirmar: “Eu estou sempre com pressa” e “nunca ando sem relógio”.
A imagem da mulher a arrastar um imenso relógio, enquanto a menina observa as aves, reenvia-nos para a ideia de uns terem relógios e outros o tempo. “Eu adoro transformar os ponteiros do relógio num bando de pássaros”, dirá a menina.
Dois ângulos ou dois pontos de vista, como se preferir, para as vivências quotidianas de uma e outra. Afinal, a mesma.
“Eu sei tudo” (mulher). “Eu estou sempre maravilhada com tudo” (menina). “Eu sou adulta e, portanto, inteligente” (mulher). “Para mim, cada novo dia é uma descoberta” (menina). Sugere a menina: “Talvez o teu Eu precise de se maravilhar um pouco?”
Atmosfera intimista
A acompanhar estas reflexões e introspecções das personagens estão as ilustrações do pintor macedónio Vane Kosturanov. Despojadas, focam-se no essencial e revelam uma forte sensibilidade.
No site do ilustrador, conta-se que é autodidacta e que, na área da pintura, as suas obras exploram “dois mundos — o consciente e o inconsciente, o mundo exterior e o interior”, sendo difícil distingui-los. Talvez essa prática e saber sejam responsáveis pela atmosfera intimista que consegue criar neste livro, tanto nas cores escolhidas quanto nas formas e expressões dos poucos elementos desenhados.
Vane Kosturanov tem livros para a infância em que assina também o texto. É o caso de A Menina e a Cidade (2020), igualmente editado em Portugal pela Alfarroba. Um destes títulos, The Girl and The Bear, foi seleccionado como um dos 200 melhores livros infantis do mundo em 2019 e está inscrito no catálogo White Ravens, emitido pela Biblioteca Internacional de Munique especializada em literatura para a infância e juventude de todo o mundo.
“Eu agora tenho de ir” (mulher). “Eu apanho-te, já sabes” (menina). “Eu não tenho tempo para brincadeiras” (mulher). “Mas a brincadeira precisa de tempo?” (menina). A pequena, de novo: “Talvez o teu Eu só precise de mim?”
A autora, Danijela Pavlek, nasceu em Zagreb (Croácia) e formou-se em Turismo, na Faculdade de Economia: “Porque sempre tive dificuldade em resistir a viajar pelo mundo. A minha cura para a alma, depois da escrita, são todos os tipos de viagem”, justifica.
Hoje, escreve blogues, livros de imagens personalizados, vários textos para sites e organiza “workshops e conferências que inspiram o empreendedorismo feminino”, informa-se no site da editora. Também aí se fica a saber que Danijela Pavlek recebeu o Prémio Kitica 2020, da Sociedade Croata de Escritores para Crianças e Jovens, por um conjunto de poemas intitulado Livro de Receitas para Pilotar na Infância.
Diz a autora: “Escrever para crianças é encontrar a magia. Escrevo poemas e rimas incansáveis porque estou a crescer com as minhas duas filhas novamente e quero ajudá‑las a lidar com isso mais facilmente.”
Tem tudo para o conseguir. Assim saiba escutar o que tem para lhe dizer a menina que foi.