Hoje, vi um gajo a “andar à guna” num eléctrico
Roupa velha, rugas e olhar de vida vivida, a cometer um pequeno delito ao não pagar o bilhete do eléctrico, ia de máscara cirúrgica, com o azul para fora como manda a lei e o Porto. Meticulosamente bem colocada.
Foda-se. Foi incrível. Já não via isto há mesmo muito tempo. Foi uma viagem no tempo, em que uma imagem me fez respirar memórias com a intensidade de quem as tinha bem guardadas num lugar seguro. Lembro-me de ser miúdo nas primeiras viagens de eléctrico sem ninguém maior do que eu, e ver miúdos, “gunas”, empoleirados na parte de trás do eléctrico e nos degraus deste veículo cheio de fios que agora é um museu vivo. Lembro-me de ver as suas cabeças muito sujas, e alguns a cheirar cola, com um ar incrivelmente rebelde e livre. Eu tinha medo só de olhar para eles. Tinha medo de cruzar o meu olhar com um deles. Eram “gunas”, viviam sob regras diferentes. Espero que a vida lhes tenha corrido bem. Uns anos mais tarde, quando já tinha corpo de atleta e a ousadia de querer sentir, também andei “à guna” num eléctrico, e por mim o mundo podia ter parado ali, nesse instante, tal foi a força do sentir estar vivo.
Hoje fui andar de bicicleta e, apesar de mal dormido, estava muito atento a algumas imagens que iam cruzando o meu caminho. Regressava da Ribeira em direcção ao mar, e como se Miragaia não fosse já suficientemente bonito, eu vejo um gajo a andar “à guna” num eléctrico. Há uns anos era apenas mais um leão na savana, mas eu já não via esta imagem há muito, muito tempo. Queria muito tirar uma fotografia, mas foi tudo muito rápido. E ainda bem que não tive tempo, porque as fotografias estragam o melhor lado das nossas memórias. Estragam-nos o que sentimos. Olhei o gajo nos olhos pelo espanto do momento e talvez ele me tenha olhado a mim. Não era um gajo. Era um senhor. Eu diria que tinha 50 e muitos anos, mas a profundidade das rugas da sua cara faziam-no parecer muito mais. Muita vida certamente ali estava. As roupas pareceram-me velhas, mas cuidadas e bem ordenadas. Era um senhor. Magro e hirto na parte de fora do eléctrico. O tempo estava meio de chuva pelo que se protegia firmemente pelo beirado do eléctrico em pé no degrau da porta enquanto segurava calmamente a pega de madeira, que ajuda as pessoas a entrar e a sair, numa mão e na outra um saco plástico com aquilo que me parecia ser uma caixa de cartão de padaria.
Isto foi tudo muito rápido, em andamento de bicicleta, eu a descer a beira-rio mais bonita do mundo, e o eléctrico com o senhor a “andar à guna”, quase a chegar à igreja mais bonita que eu conheço e que ostenta mais pecados coloniais da nossa história. Fico sempre arrepiado quando penso na Igreja de S. Francisco pela beleza da sua talha dourada e pela quantidade de gente que teve de morrer para que ficasse tão bonita. Beleza e crime de cortar a respiração. Quando me passou o êxtase do “foda-se, um gajo a ‘andar à guna’ no eléctrico!”, apercebi-me do pequeno pormenor que me fez escrever esta história: este senhor vai de máscara.
Roupa velha, rugas e olhar de vida vivida, a cometer um pequeno delito ao não pagar o bilhete do eléctrico, ia de máscara cirúrgica, com o azul para fora como manda a lei e o Porto. Meticulosamente bem colocada. Não ia com ela ao pescoço. Não ia com ela a meio da boca. Ia com a máscara colocada com a bondade que o rigor impõe. Harmoniosamente tapava a boca e com o bordo superior acima da cana do nariz. Muitos médicos não a colocam tão bem.
Fui o resto do meu passeio higiénico a pensar: “Foda-se, o senhor ia de máscara!” Fui, de tal forma, engolido por pensamentos que até abrandei as pedaladas, inconscientemente. Sei lá eu porquê, mas este senhor tem a rebeldia de ir “à guna” num eléctrico, mas o rigor de ir de máscara bem colocada, mesmo ao ar livre num dia de chuva. Foda-se, isto é lindo. Ele percebeu. Que respeito. Que dignidade.
Que não pareça que sou apologista dos pequenos crimes, muito menos da pobreza. Seja qual for a história (adorava saber) que o levou a esta condição de aparente fragilidade económica, este senhor transmitia carácter. E transmitia uma inteligência emocional que eu provavelmente não teria, se não tivesse como pagar o bilhete de um transporte. Ele percebeu que qualquer que seja a luta que o levou à sua fragilidade económica e social, não se confunde, nem se mistura com a luta pela saúde pública. Ele percebeu que as duas lutas têm de coexistir lado a lado. Ele percebeu que não combater na luta pela saúde pública torna mais difícil a sua luta pela vontade de comer. São lutas diferentes. Têm de coexistir, não uma contra a outra.
Ele percebeu o que os comentadores políticos, influencers do Instagram e os patetas pela mentira ainda não perceberam. Talvez este senhor tenha lido a Constituição tantas vezes como eu, ainda assim percebeu que as nossas liberdades não podem colidir com o bem comum, com um bem maior. Um homem livre, um homem ousado ao ponto de se exibir hirto de frente para o rio, que atravessa a maior pérola do oceano Atlântico, a cometer um delito, mas de máscara ao ar livre e, imagine-se a ousadia, bem posta!
Nós nem para ser burros somos livres, porque a escola é obrigatória. Não somos livres para não pagar impostos. Não somos livres para andar nus na rua. Não somos livres para escolher o lado da auto-estrada em que queremos guiar, mas queremos ser livres para tirar vidas e rebentar com o SNS que dá vida a todos nós. Ele percebeu a diferença entre ser livre e ser estúpido.
Gostava muito de ter tido a oportunidade de lhe agradecer pela sua rebeldia, pela sua liberdade, pelo seu carácter, pela sua humildade e pela sua honra. Gostava de lhe ter dito: “O senhor é muito melhor do que eu! E por isso obrigado, porque me alimento de inspirações.”
Dia cinzento, cara fechada, “à guna” num eléctrico... E de máscara.
Inteligência, bondade e dignidade.