Tudo isto são as nossas Paisagens Sonoras

A pandemia e o consequente confinamento forçaram-nos a lidar com situações atípicas e peculiares numa descoberta compulsiva, por vezes dramática, outras vezes resultando em epifanias surpreendentes.

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Chromatograph/Unsplash

A paisagem sonora é cada vez mais relevante na cultura contemporânea. É uma ‘fotografia’ de um lugar. Uma radiografia ao seu carácter e atividades, simultaneamente disforme e amorfa, repleta de significados e subtilezas. Uma transmissão complementar ao que a imagem retém e transporta. É, portanto, uma impressão única, tangível do lugar a que pertence e, intrinsecamente, da sua história, das pessoas que o habitam, das suas relações. Contudo, o sistema auditivo tende a ser colocado num nível de importância menor do que o da visão, principalmente porque o ato de ouvir é processado sem esforço e despercebido.

Ao mesmo tempo, o sentido auditivo tem uma função diferente da visão. É um sentido que nunca desliga, apresentando fortes funções de sobrevivência, fornecendo a capacidade de perceção tridimensional permanente e sendo a nossa porta principal para o que nos rodeia fora do ângulo de visão. Ou seja, o processo de perceção auditiva é inegavelmente diferente da visão. Esse ato permanente de escutar forçou-nos a desenvolver diferentes níveis de consciência aural. Maioritariamente temos uma relação passiva com o que ouvimos, somente perante um som perturbador é que nosso processo de escuta é ativado no modo ativo. Por exemplo, se estamos a conversar no meio de uma multidão, sabemos que o som está lá, mas estamos num modo de consciência muito baixa, não estamos a acompanhar nenhuma conversa ou palavras para além das que trocamos com o nosso interlocutor. No entanto, se uma criança começar a chorar ou se alguém pedir ajuda, automaticamente mudamos para um modo ativo. Isto para dizer que esses aspetos na natureza do som têm um impacto na relação que temos com as nossas paisagens sonoras e, mais importante, como as modelamos e como as deixamos evoluir.

Provocadas pela ação humana, as alterações dos sistemas biofísicos têm conduzido a uma alteração dos padrões naturais. Essa espiral de fenómenos e degradação dos ecossistemas conduziram, por sua vez, a fraturas irrecuperáveis na estrutura acústica de muitos territórios. Quando certos sons se perdem e com eles a identidade sonora de um lugar, é possível identificar impactos disruptivos que alteram o nosso quotidiano e que atingem a relação que estabelecemos com o lugar a que pertencemos. Mas será que conhecemos a nossa identidade sonora?

A pandemia e o consequente confinamento forçaram-nos a lidar com situações atípicas e peculiares numa descoberta compulsiva, por vezes dramática, outras vezes resultando em epifanias surpreendentes. No meu caso empurrou-me a voltar a ‘olhar’ para a minha paisagem sonora. Aqueles conjuntos de fotos e vídeos diários de ruas vazias transmitiam mais do que ausência de movimento. Apontavam para uma transformação sonora. Entre as muitas experiências exclusivas e pontuais, uma bastante óbvia e pouco comentada foi a mudança radical da paisagem sonora. Comecei por reparar que ouvia menos carros, ouvia mais os pássaros, os meus vizinhos começaram a aprender a tocar um instrumento musical, ouvi mais “bons-dias” entre varandas. Mas o silencio também trouxe ausência, menos companhia, menos bailarico, menos festas, menos vida. Foi apenas uma transformação, ouvir e sentir falta, mas obrigar-me a conhecer e a ligar-me ao meu espaço sonoro, sempre presente, mas sempre ignorado. Esta transformação é mais do que uma fotografia do que se passa. Ela representa um estado intrínseco de como a vivemos: mais atarefados e desatentos, parados, tensos e preocupado.

Na partilha destas reflexões com um amigo que vive em Nova Iorque reparamos como a paisagem sonora é um elemento vivo numa permanente e por vezes violenta mutação. Enquanto comentava o estranhamente desconfortável silêncio de uma noite de São João no Porto ele relatava os seus angustiantes meses sonoros e como eles eram representativos de uma sociedade. O silêncio tenso da preocupação da doença foi substituído pelos berros de ordem e de confronto de algo maior com origem numa ferida sociocultural aberta. A esta nova intensa paisagem sonora juntaram-se 24 horas de fogo-de-artifício ilegal (não enquanto ato festivo, mas como símbolo de transgressão, provocação e violência).

Como em tão pouco tempo passamos para um agridoce pseudo silêncio, com sons de animais selvagens a reconquistar metrópoles e chegamos ao ruído das ruas com os berros e os fogos de artificio. Depois voltaram lentamente, numa brutal e impercetível lentidão, mas com uma força imparável, os velhos sons a substituir muitos dos novos. Com isto vamos vivendo a alegria, a angústia e a desolação de quando as referências que nos ligam a um determinado sítio (tempo e lugar) desaparecem. Saudades de um lugar sem que se tenha saído de lá. Tudo isto são as nossas Soundscapes. São as radiografias do nosso lugar, do qual fazemos parte e que nos afeta.

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