Veiga Simão e a sua cruzada pela Educação (1970-74)
Tivesse António de Spínola tido a capacidade e a coragem de nomear Veiga Simão primeiro-ministro do I Governo Provisório, qual teria sido o rumo do país?
Conheci Veiga Simão em Outubro de 1969, quando o Adelino Amaro da Costa e eu, ambos jovens jornalistas com interesse dominante em matérias educativas, o entrevistámos no Hotel Tivoli – numa das suas fugazes passagens por Lisboa – para o Diário de Lisboa e para o jornal universitário O Tempo. É no âmbito dessa entrevista que Veiga Simão revela o seu programa liberalizador e democratizante, feito em discurso fresco e inovador, pronunciando as frases “batalha da educação” e “democratização da educação”, conceitos que se transformam em princípios motores de toda a condução da sua política educativa nos quatro anos e meio em que esteve à frente dessa difícil pasta, e que ele não se cansa de repetir ad nauseam.
Nomeado ministro da Educação Nacional, é empossado no cargo a 15 de Janeiro de 1970, já no declínio da “Primavera marcellista”. Cabe-lhe, logo à cabeça, a espinhosa tarefa de ultrapassar o impasse que paralisava a academia desde há cerca de um ano. O seu antecessor, José Hermano Saraiva, mostrara-se totalmente incapaz de superar o animado confronto entre estudantes de Coimbra e o então Presidente da República, Américo Thomaz, gerando-se uma situação extremamente delicada que alastra qual “mancha de petróleo” ao conjunto das instituições de ensino superior em Lisboa, Porto e Coimbra e suscita a ativa solidariedade dos cerca de 40.000 universitários de então.
Mercê de capacidades negociais notáveis, Veiga Simão consegue uma apresentação oficial de desculpas do lado estudantil e assim restabelecer a atividade universitária normal nas quatro universidades estatais existentes à altura.
Relato este episódio para sublinhar a arte diplomática, dialogal e negocial, aliada a uma fortíssima determinação pessoal, que são traços vincados da personalidade de Veiga Simão que marcam toda a sua atuação política e cidadã.
Veiga Simão é feito ministro na rampa descendente da esperança nacional. Com efeito, o cumprimento das promessas de uma transição pacífica do “salazarismo” para a democracia – como viria a acontecer na vizinha Espanha com o fim do “franquismo” e o retorno suave a uma monarquia constitucional – e a concomitante cessação da guerra colonial que sugava as energias nacionais, quebrava as pernas da sua juventude e isolava Portugal no concerto das nações viam-se cada vez mais problemáticos. O golpe de misericórdia é dado com a derrota de Marcello Caetano na votação da Lei Orgânica do Ultramar, revés averbado perante as forças ultraconservadoras que encontram abrigo e ambiente conspiratório no Palácio de Belém, acoitadas atrás do Presidente Américo Thomaz.
Dificilmente se poderia desenhar uma conjuntura mais difícil para a ação de um jovem ministro “quarentão”, profundamente empenhado na “batalha da educação” e na “democratização da educação”, sentenças que ele proclama sem descanso.
A verdade é que Veiga Simão chega ao Campo dos Mártires da Pátria – antiga sede do Ministério da Educação Nacional (MEN) – como um desconhecido. Licenciado em Ciências Físico-Químicas na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra (1951, com 22 anos de idade), ele passaria anos importantes da sua vida académica no Reino Unido, onde se doutora em Física (Cambridge 1957), tendo regressado à sua alma mater, a Universidade de Coimbra, onde chega a catedrático em 1961. Mas não aquece o lugar. Escassos dois anos volvidos, é destacado para reitor da Universidade de Lourenço Marques cuja obra notável é interrompida para vir ocupar o cargo de ministro.
Veiga Simão trava à frente dos destinos da Educação os mais duros e decisivos combates no seio do Governo. Ministros, colegas de governo, politicamente poderosos e bastiões do conservadorismo, acusam-no permanentemente de sedição, de conluio com as forças revolucionárias, de progressismo socializante na condução da reforma educativa, de traição à Pátria. Pontuam nesta frontal oposição no seio do Governo os sectores ultrarradicais que se entrincheiram na União Nacional perante a débacle da ala liberal de Sá Carneiro, Leite Pinto, Francisco Balsemão, Mota Amaral, Miller Guerra, Adérito Sedas Nunes, e outros, que abandonam a arena da política institucional, desiludidos da luta inglória pela abertura do regime aos ventos da participação democrática.
Contra ventos e marés, com o apoio episódico (refletindo estados de alma profundamente hesitantes) do presidente do Conselho, como aconteceu com a ida do ministro à RTP anunciando, em direto, a aprovação de quatro novas universidades, quando o mesmo diploma – ulteriormente publicado como D.L. 402/73, de 11 de agosto – se tinha visto liminarmente “chumbado” em conselho por uma larga maioria dos ministros, Veiga Simão foi furando por entre brechas que habilmente encontrava para ir afirmando um programa consistente de reformas. Entre as inovações estruturantes e mais relevantes da sua lei de bases, Lei 5/73, de 25 de julho, destacam-se:
– A reforma profunda do ensino superior, compreendendo o reconhecimento de doutoramentos no estrangeiro, a criação de um sistema “binário compensado” (universidades e politécnicos), o alargamento acelerado da rede por todo o país (vencendo o monopólio pluricentenário de Lisboa, Coimbra e Porto), a criação de condições de investigação por forma a reter os melhores talentos nacionais e a atrair cientistas internacionais e, sem dúvida, o lançamento de um amplo movimento de autogestão, libertando a universidade da tutela governamental e abrindo caminho a uma autonomia universitária (que só viria a ter consagração plena cerca de 15 anos mais tarde com a Lei 108/88.
– A unificação e a extensão do ensino básico que Veiga Simão concebia em dois ciclos de 4+4 anos, com o lançamento da experiência-piloto dos 3.º e 4.º anos que visavam estender gradualmente os dois anos de escolaridade do ex-ciclo preparatório do ensino secundário.
– A diversificação do ensino secundário com a duração de quatro anos e coexistindo vias gerais com vias profissionalizantes, todas elas conducentes ao ensino superior.
– A aposta estratégica na formação de professores com a disseminação de uma rede de Escolas Superiores de Educação (ESE) que funcionavam separadamente dos Institutos Politécnicos (IP) (só mais tarde, já depois da revolução de Abril de 1974 é feita a integração das ESE nos IP. Em concomitância Veiga Simão lança um ambicioso programa de formação de formadores no estrangeiro, com relevo para os programas de mestrado e doutoramento de bolseiros portugueses nos EUA.
– Um investimento forte na educação de 2.ª oportunidade, abrindo vias de recuperação para adultos com baixas qualificações, visando a formação profissional e a valorização da empregabilidade.
– Lançamento de uma ampla rede de educação pré-escolar em estreito relacionamento com os municípios.
Em conclusão, importa salientar o desenho moderno e futurista da lei de bases impulsionada por Veiga Simão, que consagra uma concepção aberta e democratizante da anquilosada Educação portuguesa que vinha registando atrasos lamentáveis desde meados do século XVIII.
Lembre-se ainda que para a formulação das opções fundamentais que se veriam plasmadas nas Lei 5/73, de 25 de julho, Veiga Simão coloca, previamente, a debate público, a 15 de janeiro de 1971, dois opúsculos fundamentais: Projeto do Sistema Escolar e Linhas Gerais da Reforma do Ensino Superior. O resultado do debate público, reunido em mais de 40.000 documentos, é sistematicamente tratado e publicado no Gabinete de Estudos e Planeamento da Acção Educativa (GEPAE), criado em 1965 no âmbito do Plano Intercalar de Fomento, então presidido por Fraústo da Silva, organismo que com Veiga Simão se transforma no coração estratégico e principal órgão de estudo e de desenho da Reforma Educativa que ele impulsiona com a proposta de lei que está na origem da ulterior lei de bases. E tudo isto é feito em plena vigência do Estado Novo com o funcionamento vigilante da PIDE e da Censura Prévia de Imprensa.
Não espantará que, nas frequentes noitadas de trabalho em casa de Veiga Simão, sita numa paralela à Avenida de Roma, ele se queixe de tormentosas úlceras gástricas e duodenais que o obrigam à ingerência de frequentes copos de leite, antídoto eficaz contra o braseiro interior que atacava o ministro, diligentemente levados pela mulher, Madalena, sempre disponível e próxima para prestar o apoio fundamental ao marido.
Tivesse António de Spínola, primeiro Presidente da República em democracia, tido a capacidade e a coragem de nomear Veiga Simão, seu amigo e apoiante incontornável durante os complexos períodos da guerra colonial, primeiro-ministro do I Governo Provisório, ao invés de o enviar para “branqueamento” como embaixador de Portugal nas Nações Unidas (1974-75), qual teria sido o rumo do país? Em que situação nos encontraríamos hoje?
São conjeturas que deixo a cargo dos especuladores políticos e dos imaginativos amantes dos cenários alternativos!
Professor e investigador, Universidade Católica Portuguesa. Ex-ministro da Educação