Uma viagem ao Verão Quente

Isabel Lindim é filha de Isabel do Carmo. Desde sempre é a “Bli”. Nasceu no começo de 1972, quando a mãe já era médica endocrinologista e fundadora das Brigadas Revolucionárias. Hoje, quando olha para as fotografias do Verão Quente de 75, vê na cara da mãe a preocupação.

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“Bli” é a filha. Isabel como a mãe, nunca chamada assim. A “Bli” é tão parecida com a mãe quando a mãe tinha a idade que ela tem hoje que chegamos a duvidar quem é quem. O discurso, a atitude distingue-as. A filha nunca terá a energia da mãe, confessa. A energia de quem tem a urgência de mudar o mundo. Mas a filha é tão de esquerda quanto a mãe e fascinada pelo tempo em que a mãe e Carlos Antunes fundaram as Brigadas Revolucionárias, militaram no PRP, Portugal era uma folha que parecia em branco. Por isso mergulhou nos arquivos em 2007, fez o site www.memoriando.net, com Alfredo Caldeira continuou o trabalho em www.casacomum.org, editou o livro Mulheres de Armas (2012) sobre a acção das mulheres nas Brigadas Revolucionárias. É jornalista.

Isabel do Carmo é natural do Barreiro. É especialista em endocrinologia e nutrição. É provável que aqueles que a consultam, e que nasceram depois da década de 1970, não saibam do seu passado político, ou que esteve presa anos, da sua longa greve da fome. Os da sua geração lembram-se bem. Dela e de Carlos Antunes, seu companheiro durante 25 anos.

O que a seguir vão ler resume duas horas e meia de gravação. É um recuo no tempo, ao Verão de 75, à leitura de Isabel do Carmo do que então se passou (por exemplo, no 25 de Novembro), às memórias de “Bli” e ao que hoje compreende a partir do trabalho de investigação a que se tem dedicado.   

Quando olha para as imagens de 1975, e era uma criança pequena, o que é que vê?

“Bli” Lindim — As memórias que tenho são do jornal, o
Revolução. Lembro-me de estar com muita gente à volta, tanto em casa como no jornal. Também passávamos algum tempo no partido.

O jornal era porquê?

Isabel do Carmo — Era o
Revolução, de que fui directora, e que o PRP [Partido Revolucionário do Proletariado] editou. Semanário. Um belo grafismo. Tivemos o gosto de o José Augusto França dizer que os nossos cartazes eram os mais bonitos das paredes de Lisboa. Essencialmente, dava eco às lutas dos trabalhadores. Os jornais mais institucionais eram o eco das superestruturas políticas, do governo provisório, e muito menos das lutas sociais.

Como é que percebeu — logo depois da revolução — que era indispensável ter um veículo?

Isabel — Raramente tínhamos acesso à televisão por causa do sectarismo dos partidos, que controlavam a televisão. Também fazíamos comícios. O PRP, considerado um pequeno partido, fazia um comício no Campo Pequeno, na Praça de Touros. Os jornais tinham uma grande força, eram muito lidos, e os revolucionários uma novidade. Fazíamos venda militante, directa, pelas ruas. Cada número tinha um editorial escrito por mim.

Já fez o exercício de ler editorial após editorial e perceber a cronologia e a substância desses dias?

Isabel — Sim. Não me envergonho do que escrevi. Li quando a “Bli” organizou o Memoriando [
site/arquivo www.memoriando.net]. E quando na [livraria] Ler Devagar fizemos sessões que se referiam ao passado.

Que mulher é que era, sectária?

Isabel — Não. Não suporto o sectarismo. Depois do 25 de Abril, o sectarismo era mais forte porque havia mais possibilidades de expressão. Durante a ditadura, tal como as organizações, o sectarismo era clandestino. 
Típico é o sectarismo dos anos 60. Há a Checoslováquia, o Maio de 68. Aparece a dissidência sino-soviética, aparecem as organizações maoístas — com as quais nunca me identifiquei —, as organizações trotskistas. E outros como nós, que não éramos nem maoístas nem trotskistas. Há uma explosão de organizações que reflectem aquilo que em Inglaterra se chama Nova Esquerda. Esses grupos como que descobriam a verdade. Como se até aí estivessem envolvidos num discurso convencional e convencionado pela esquerda.

Ou seja, pelo Partido Comunista. Em Portugal, especificamente, a oposição era o PC.

Isabel — Sim. O facto de estas organizações descobrirem a sua verdade e não lhe darem um carácter relativo e transitório que ela tinha fazia com que houvesse muito proselitismo. Havia qualquer coisa de seita: não se podia fugir dali. O PC tinha apoios na União Soviética e uma estrutura diferente das pequenas organizações. E expulsava do céu, do paraíso da esquerda, os pequenos partidos!

Mergulhou nisto que é a sua história, ainda que enviesada, no livro Mulheres de Armas (2012), que incide sobre a acção das mulheres nas Brigadas Revolucionárias. Porquê?

“Bli” — Tinha especial curiosidade sobre a cisão de algumas pessoas com este sectarismo e com o começo das Brigadas Revolucionárias. As acções: a maior parte das pessoas que as praticaram só teve actividade nas Brigadas Revolucionárias. Algumas vinham de ambientes onde havia liberdade, chegaram aqui para estudar e depararam-se com situações terríveis. Os cavalos, a polícia a entrar pela universidade, a bater nas pessoas. Isto coincidiu com o conhecerem pessoas que tinham ideias concretas sobre o que se poderia fazer para abalar o regime. Isto tinha de ser contado, não é? As pessoas têm de ter noção de que existiram organizações, a ARA [Acção Revolucionária Armada, do PCP], a LUAR, [Liga de Unidade e Acção Revolucionária] e os Católicos Progressistas, que tiveram acções muito importantes anteriores ao 25 de Abril. Não foram só os militares que quebraram com o regime. Ele já estava abalado.

Debruçou-se sobre as fracturas anteriores ao epílogo que foi o golpe dos militares?

“Bli” — Sim. No início fui também ao arquivo militar do exército. Há relatos de militares, percebe-se que aquelas acções [das organizações citadas] tinham efeito. Eram exercidas em quartéis. Não conheço muitas pessoas da minha idade que conheçam essa história. Conhecem a minha mãe como figura política, e não só, mas a história das Brigadas ficou escondida.

E o sectarismo, encontrou-o na leitura dos editoriais?

“Bli” — Não. No
Revolução, de todo. [Sobressai] a necessidade de defender a luta operária e os agricultores, de lhes dar voz. Não vejo ataque político. Gosto da imagem que tinham, muito vanguardista.

A vanguarda no grafismo tinha que ver com a relação da Isabel com o Ernesto de Sousa (artista, crítico de arte, fundador do movimento cineclubista)? Viveram juntos, antes de a Isabel casar com o pai da “Bli”. Mais tarde vive com Carlos Antunes.

Isabel — As pessoas relacionadas com o Ernesto de Sousa acabaram por ser os nossos gráficos. O Carlos Antunes tinha vivido na horrível estética do estalinismo.

Uma estética dominada pelo carácter hegemónico do edifício bruto, do colectivo sobre o indivíduo (que isolado parece pequeno, frágil).

Isabel — A expressão estética tem que ver sempre com as outras. A arquitectura, imperial, não é muito diferente da arquitectura fascista-nazi. O estalinismo era aquele naturalismo soviético falso. As pessoas que eram desenhadas: era uma idealização de um proletariado que não existia.

Quando o conheceu, Carlos Antunes tinha abandonado essa estética estalinista?

Isabel — Sim. É importante as pessoas coincidirem nessas questões. Eu tinha vivido cinco anos com o Ernesto de Sousa. Era muito jovem, teve influência na minha formação. Ele era mais velho 19 anos. Foi um choque muito grande na família.

O primeiro choque, imagino, foi viverem sem um casamento.

“Bli” — Eu ouvi a minha avó falar sobre isso [risos]. A minha avó é uma personagem de um filme italiano.
Isabel — A minha mãe não era católica praticante, o meu pai não era católico. Tinham casado pelo civil nos anos [19]30, o que era uma proeza. Mas a obediência às normas era muito forte. A minha irmã não casou pela igreja, mas fez uma cerimónia de registo civil como se fosse pela igreja. Vestida de noiva, com menina das alianças. Eu saí totalmente das normas e foi traumático.
“Bli” — Depois melhorou porque casaste realmente, com um médico.

Com o seu pai, Orlando Lindim Ramos?

“Bli” — Sim.

Casou em que ano?

Isabel — Não me lembro [risos]. O Orlando tinha estado cinco anos preso em Peniche. Algum tempo depois, conheci-o e casámos. Isso era completamente aceite. O que não era bem aceite era fugir às normas sociais, de regulamentação do relacionamento sexual.

A dificuldade era com o que tocava o campo sexual?

Isabel — Era. E as mulheres portuguesas foram muito marcadas por isso. Muito mais do que as pessoas contam.

Era o medo da gravidez antes do casamento?

Isabel — Era a perda da honra. Estou a falar de uma família no Barreiro, em que as pessoas tinham cultura. Quando estas coisas se passavam nas áreas rurais, a rapariga era estigmatizada para o resto da vida.
“Bli” — Não consigo imaginar-me nesses contextos. Eu tive o contrário. Compreensão e apoio em todas as minhas opções. Mesmo quando eram as más.

De todos os actos de transgressão, ou lidos como tal, da sua mãe, qual é que mexeu mais com a família?

“Bli” — Quando foi presa. Não é bem uma transgressão, é uma consequência. As actividades políticas nunca foram objecto de crítica em casa. Contudo, quando foi presa, foi um grande choque. Eu tinha cinco anos. Lembro-me de estar em casa da minha tia e de me dizerem: “A tua mãe vai estar presa durante um tempo, ficas aqui connosco.” Era um prédio de família. A minha tia vivia no primeiro andar, a minha avó no segundo. Foi durante a primária. Ainda bem que foi no Barreiro, porque fui muito acarinhada por toda a gente.

Vamos voltar há 40 anos e ao começo da entrevista. Quando vê imagens daquele tempo, o que vê na cara da sua mãe?

“Bli” — Era muito bonita. A partir de 75, vejo uma certa preocupação. Que só passou quando saíram da prisão, em 82. Ver uma fotografia de 82 e uma de 76..., é uma mudança impressionante.

Como é que era o sorriso dela?

“Bli” — Em 76, não havia muitos sorrisos.
Isabel — O 25 de Novembro de 75 foi a contra-revolução. O projecto de uma sociedade nova baseada no poder popular, com um poder económico-social diferente, tinha sido derrotado. O que não queria dizer que psicologicamente nos sentíssemos derrotados. Embora conheça muita gente que nunca se recompôs do 25 de Novembro.

Era uma questão de vida ou de morte? Uma parte deles morreu com a derrota do 25 de Novembro?

Isabel — Sim. Havia um projecto revolucionário, com muita esperança. Com muita fantasia, naturalmente. Algumas pessoas viram que o trajecto seria as coisas acabarem neste tipo de sociedade, da desigualdade e do domínio financeiro.

Nas suas fotografias antigas, vê esta preocupação que a “Bli” identifica? Sisuda.

Isabel — Vejo, vejo. A seguir ao 25 de Abril é uma alegria. Porque a ditadura tinha caído. Porque podia circular nas ruas, gritar, falar. E depois o fenómeno de organização das pessoas, espontâneo. A ocupação das casas, dos campos. Portugal era um país de castas antes do 25 de Abril. Havia pessoas que estavam abaixo do zero. E de repente tinham o direito de falar. Esta alegria não transparece nos livros de análise política mais institucionais, em que só se fala dos governos, dos ministros, das influências políticas.

Quer contar uma história de uma pessoa que nunca teve oportunidade de falar e que se manifestou?

Isabel — Aquelas senhoras que eram chamadas “criadas” iam às assembleias onde estavam os médicos, os professores de faculdade, e falavam. Nós tínhamos uns assomos de organização nas associações de estudantes, havia regras de comportamento. Essas pessoas, não. Estou a lembrar-me dessas senhoras, as tais que vestem bata azul, a levantarem-se. Nos primeiros dias, havia militares do MFA a dirigir as assembleias e sabiam tanto das assembleias como estas pessoas que estou a descrever. Elas queriam era levantar-se e expressar os seus desejos, a sua revolta, aquilo que estava mal. Muito comovente. Isto ninguém me tira.
“Bli” — Toda a pesquisa que fiz foi anterior ao 25 de Abril. Algumas mulheres disseram que no pós-25 de Abril já não tinham vontade nem forças para continuar. Viveram aquele ano de efervescência e com o 25 de Novembro quebraram. O que me atrai é ouvir as histórias. Perceber o dia-a-dia de uma pessoa que, dentro de uma malinha, tem um explosivo para rebentar em tal dia.

Conte detalhadamente. Para se perceber o que é que representou o 25 de Novembro, temos de ouvir mais sobre o antes e até sobre a preparação do explosivo na malinha.

“Bli” — Tentei saber o que é que estas mulheres sentiam. O que é que as motivava a participar naquelas acções tão corajosas. E não eram só as que carregavam bombas. Estou a falar das que davam a casa para clandestinos se esconderem. Não é fácil para essas pessoas lembrarem-se do dia-a-dia. Algumas conseguiam descrever os momentos de medo. Preparavam uma bomba sem experiência alguma sobre o assunto. Uma mãe estava com o filho num dia em que houve um erro técnico e uma explosão de que resultaram duas vítimas. Ela estava a dar apoio, dentro de um Mini, com o filho, perto da estação de Santa Apolónia. Tinha mais explosivos no carro. Disfarçada de peruca. Aconteceu uma explosão no porta-bagagens, mas eles não ficaram feridos.

Estas mulheres eram, mais do que tudo, estudantes?

“Bli” — As mais novas, estudantes, eram demasiado destemidas. Os elementos mais velhos que participavam nas acções — e o Carlos Antunes, também — tinham de lhes dizer: “Cuidado, não se pode mesmo falar destas coisas.” Elas tinham vontade de contar! Sentiam aquela coisa: “Estes colegas são pessoas esclarecidas, sofrem com a repressão na universidade, posso contar com eles.” Depois havia as outras mulheres que já trabalhavam, que tinham filhos. Essas sentiam o medo na pele, mesmo.

A seguir a 1974, e durante aquele ano tão cheio, quais foram os grandes acontecimentos, os momentos de fractura?

Isabel — Fractura não houve. Todos os dias havia manifestações, grandes e pequenas. Comícios. E contacto com jornalistas, éramos objecto de curiosidade. E contacto com grupos estrangeiros. Depois do 25 de Abril, o PRP passou a protagonizar a acção, as Brigadas desapareceram. Já não era o momento de acções. Era o momento de outro tipo de luta.

Desapareceu a vertente militarizada dessas acções e concentrou-se a acção na ideologia e na política. Era isto?

Isabel — Completamente.
“Bli” — E na produção de documentos.
Isabel — Caramba, uma pessoa poder escrever, poder dizer o que pensa. E isso de um dia para o outro. Algumas pessoas das Brigadas tiveram resistência a esta mudança. Pessoas que pensaram: “Esta não é a nossa revolução.”

Desde o princípio? Porquê?

Isabel — Nos primeiros dias. Não era a nossa revolução. Tínhamos contribuído para ela, bastante, porque as acções tinham enfraquecido o regime. Mas não era a revolução socialista. [Esta resistência] tem pouca expressão. A maior parte da organização vem para a rua, para as manifestações, faz cartazes, bandeiras.

Estava entre o grupo que disse que aquela não era a revolução socialista ou pertencia aos moderados? 

Isabel — Fui eu que redigi o primeiro comunicado a saudar a revolução e a dizer que as formas de luta iam ser outras. Para mim, foi claro desde as primeiras horas. Não era a nossa revolução, mas era a revolução da liberdade.
“Bli” — Eu gostava de saber como era o dia-a-dia nesse ano e meio. Insisto nisto. Gosto da história da vida privada.
Isabel — A história da vida privada é que não havia vida privada [risos]. Habitávamos transitoriamente aqui e acolá, os três, o Carlos Antunes, a Bli e eu. Nunca tivemos casa. Inicialmente, havia uma casa clandestina que se manteve depois do 25 de Abril e onde estávamos com outras pessoas. Depois, habitámos a sede do PRP.

Porque é que não tinham casa? Porque isso era uma preocupação burguesa, porque não havia dinheiro e havia coisas mais urgentes a fazer?

Isabel — Não era uma questão ideológica. Eu até gostaria de ter uma casinha e estar lá sossegada com a “Bli”.
“Bli” — Sossegada não acredito que gostasses.
Isabel — Foi mais prático assim. Havia a sede do PRP, uma casa ocupada na Rua Castilho que tinha um quintal. Nós passámos a habitar no sótão. Saíamos dali para as reuniões, para as manifestações. Tínhamos um quarto, uma casa de banho. Não sei bem como é que comíamos. A Bli tinha uma caminha ao lado.
“Bli” — Tomávamos banhinho? Tínhamos uma banheira? [risos]
Isabel — Como havia ocupação de casas, [os proprietários] retiravam banheiras, sanitas e bacias, para as casas não serem habitáveis. Neste caso, a porta não foi arrombada. O Copcon foi com as Chaves do Areeiro e abriu a porta. Para nos instalarmos, tivemos de comprar sanitas, banheiras e bacias. Havia higiene.

Diz que era prático porque não se perdia tempo. Descreve um sentimento de urgência. Era assim que era sentido?

Isabel — Sim. Era a perspectiva de haver um poder revolucionário e um poder na base de uma nova estrutura — que não a representação democrática parlamentar. Mais do que isso, seria a constituição de conselhos, de comissões, de onde emanava uma representação para o poder central. Era esta a nossa concepção, que ainda tenho um pouco. Havia a urgência de implantar isso como base económica e social e lutar contra as desigualdades.

Se fossem Governo…

Isabel — Nunca seríamos Governo. O que sentíamos é que tínhamos muitas forças contra nós. A força da América, que queria aqui uma democracia e não uma coisa avançada, revolucionária. As outras democracias também não desejavam ver no extremo da Europa um braseiro revolucionário. E sobretudo a União Soviética não queria que se instalasse aqui um poder revolucionário, que abalaria toda a sua política externa.

Não tinham aliados?

Isabel — Não.

Eram um bando de quantos?

Isabel — Era muito grande. A UDP tinha uma grande estrutura, também. Tínhamos sede em todos os concelhos. No Barreiro, tínhamos várias sedes. Agora, sou cabeça de lista em Setúbal pelo Tempo de Avançar, vou fazer reuniões. No outro dia, no meio do Alentejo, fui a uma herdade e aparece uma pessoa a dizer que era do PRP.
“Bli” — Essas pessoas passaram para outros partidos?
Isabel — Muitas passaram para o Bloco de Esquerda. Estiveram um tempo sem estar organizadas.

Vale a pena ir atrás e pensar na sua dissidência em relação ao PC e na fundação do PRP. É um corte com uma força organizada que durante décadas representou a oposição.

Isabel — A maior divergência talvez fosse a descoberta do que era o estalinismo. Vivíamos entre dois focos de informação manipulada, pela ditadura e pelo PC. Quando metíamos um bocadinho a cabeça fora de água (algumas pessoas iam a França, traziam publicações), começávamos a ver o que era a repressão naqueles países, o que tinha sido. Quando li a descrição dos processos de Moscovo, tive um choque enorme, enorme. Como se tivesse andado enganada até aí.

Leu isso em Paris, onde esteve seis meses a fazer um estágio de Medicina?

Isabel — Li em Portugal.
“Bli” — Às escondidas.
Isabel — Quando li a vida do Trotsky, tive a mesma sensação. Retrata a perseguição feita ao Trotsky, o assassinato. Ainda hoje não percebo como é que há pessoas que branqueiam o estalinismo ou que não dizem que rejeitam aquilo.

Tem amigos comunistas?

Isabel — Ainda tenho. E sou capaz de me organizar com eles, episodicamente, para coisas concretas. São boas pessoas, mas penso que apagam um bocado [esta realidade].

Saiu formalmente em 70.

Isabel — Sim. Mas fui-me afastando.
“Bli” — O Marcello Caetano foi em 68. O grande ditador caiu, o fantasma foi-se embora, mas afinal as mudanças não foram muitas.

Isso acicatou ânimos?

“Bli” — Sim. Falo das Brigadas. Havia muitas pessoas que nada tinham que ver com o Partido Comunista. Em 69, começaram a perceber que não ia haver alteração.

Há uma data certa para a fundação das Brigadas?

“Bli” — Em 70, em Paris. Há documentos manuscritos em que se começa a delinear as Brigadas Revolucionárias e as suas acções. Uma pessoa, que conhecia o Carlos Antunes, guardou cinco caixas com documentos dessa altura. Passaportes falsos, bilhetes de identidade, descrições das reuniões. De Paris vêm para cá. O primeiro explosivo vem de avião. Hoje não conseguiam fazer estas coisas!

A fundação das Brigadas acontece na sequência da saída do PC?

Isabel — O Carlos Antunes e eu fundámos as Brigadas. Estou em Paris de Outubro de 1969 a Março de 70. Como acontece sempre nestas saídas do PC, fizemos muito para ver se as coisas mudavam por dentro. E se por dentro se constituía uma organização armada. Começámos a ver que isso era impossível. A ruptura com o PC dá-se nesses meses. A fundação das Brigadas, também.

Até onde estavam dispostos a ir na luta armada? Isso estava determinado à partida?

Isabel — Ficou decidido que não se tirava a vida a ninguém. E assim foi.

Existe um documento com isso ou era um acordo tácito?

Isabel — Foi verbalizado com certeza entre nós. Temos muito poucas coisas escritas. Uma das nossas decisões era não escrever. Não escrever por razões conspirativas. E não escrever porque estávamos fartos de documentos. Não há direito a tirar vida a uma pessoa, mesmo que esta pessoa seja um inimigo. É a mesma filosofia que faz com que sejamos contra a pena de morte. Houve uma discussão inicial com o Nuno Bragança, que defendia que se tirasse a vida aos “pides”.
“Bli” — Todas as pessoas que ouvi nas entrevistas tinham isto muito presente. Havia organizações de luta armada noutros países onde havia vítimas. [Em Portugal] os explosivos eram postos nos quartéis e os prédios ao lado eram avisados.
Isabel — Avisados para não se assustarem, não era que a bomba fosse atingir o prédio.
“Bli” — Na Praça de Londres ainda houve um buraco na cozinha de um vizinho.
Isabel — Aí fui eu fazer o reconhecimento e decidir o sítio onde ela [a bomba] era posta. Era numa casa de banho que era capaz de ficar encostada a outra casa de banho.

O princípio era não matar ninguém. Sabiam que a bomba tinha um determinado alcance. Mas havia riscos. O procedimento era rigoroso?

Isabel — Muito rigoroso. Só não foi rigoroso quando explodiram as duas que mataram dois camaradas.

Foi quando? O que aconteceu?

“Bli” — Em 73. Era onde estavam as listas dos soldados que iam para a guerra. Como na maioria das acções, no Quartel da Graça, na Rua Rodrigo da Fonseca, o grande objectivo sempre foi contrariar a Guerra Colonial.

A primeira grande acção foi o ataque à base da NATO, na Fonte da Telha. Quer destacar outra acção?

Isabel — O recuperar dos mapas em Dezembro de 72. Uma pessoa teve de se meter na sala [dos Serviços Cartográficos do Exército] onde estavam os mapas durante não sei quantas horas, e outros estavam à espera, cá fora. Carregaram cerca de 200 mapas, pesadíssimos, que chegaram a África, aos movimentos de libertação PAIGC, MPLA e Frelimo.

Há um vocabulário que diz respeito a uma acção, a um grupo, a um tempo. Disse “recuperar” (os mapas) e não “roubar”.

Isabel — “Roubar” tinha uma conotação negativa.
“Bli” — Mas não é bem recuperação porque nunca foram deles.
Isabel — O que se considerava era que as coisas pertenciam aos revolucionários, ao povo, à oposição, e que só estavam transitoriamente em mãos erradas. Como o dinheiro dos bancos.
“Bli” — Assaltos não eram bem assaltos: era a recuperação.

Quando é que a Isabel deixou de pensar assim e de usar essas palavras?

Isabel — Essas coisas têm épocas. Quando deixámos de as fazer [risos].

Isto é uma narrativa que tem palavras específicas e que conta uma história. Para si, dizer: “Vou recuperar um dinheiro que é do povo”, fazia-lhe sentido?

Isabel — Aquilo tinha um significado do ponto de vista político. Empregava-se muito a palavra “assalto”. O assalto não era roubo. A minha mãe teve um grande regozijo com os assaltos aos bancos de Alhos Vedros, perto do Barreiro.

Esse foi perpetrado por si?

Isabel — Não. Foi pelo Carlos Antunes. Nunca fiz assaltos.
“Bli” — Nenhum dos assaltos nem nenhuma das acções [foram feitas pela minha mãe].
Isabel — Transportei explosivos.

Porque é que não fez assaltos ou acções?

Isabel — Era muito conhecida, já nessa altura. E tinha uma vida legal muito estruturada. Era médica no Hospital Santa Maria.

É verdade que, durante estes anos, uma vez por semana dava consultas no Barreiro?

Isabel — É.

Já era endocrinologista?

Isabel — Já era, felizmente. Ainda durante a ditadura fiz o exame da especialidade.

Conte mais porque é que nunca abandonou a Medicina, mesmo que só a praticasse uma vez por semana.

Isabel — Porque o meu projecto era ser médica. O meu projecto não era ter actividade política para o resto da vida. Tudo isto eram coisas transitórias. Fui sempre ao Barreiro fazer consulta em pleno processo revolucionário. Era complicado mas ia.

Como é que ia, de carro, de autocarro, de barco?

Isabel — Umas vezes de barco, outras vezes de carro. Tinha um Fiat 600.

Como é que tinha cabeça para fazer consulta? Hoje parece inconciliável esse frenesim.

Isabel — Sou muito organizada de cabeça. Achei sempre que a Medicina tinha que ver com a política. É o contacto directo com as pessoas. Tenho a facilidade de estar sempre a fazer trabalho de campo e de investigação, que é ouvir os doentes. Não impingia aos doentes a minha maneira de ver a política, como também não impingia aos alunos, na faculdade.

Porque é que teve a “Bli” no meio deste turbilhão?

Isabel — Desejava ardentemente ter um filho. Foi tudo muito calculado. Primeiro fiz a especialidade, depois tive a “Bli”.

Estar tão empenhada politicamente não a fez sequer hesitar, adiar o projecto de ter um filho?

Isabel — Não. Os meus filhos sofreram muito com a minha actividade política. Tenho algum remorso a esse respeito. Quando vejo o que a “Bli” e o irmão dão às filhas..., a vida delas é um paraíso comparado com a vida que eles tiveram comigo. Instabilidade, não habitarem casas normais, não ter acesso às coisas. Tínhamos muito pouco dinheiro.

Por isso insisto em saber porque não adiou. Tinha noção de que a clandestinidade era uma possibilidade.

Isabel — E a prisão. É um caminho de coerência. Pensava o que pensava da ditadura, tinha de lutar contra ela. Isso fazia-me correr riscos. Mas também queria uma vida como mulher, com filhos. Então é andar para a frente, ter os filhos e fazer a luta.
“Bli” — Houve alturas em que tive de estar escondida com a minha mãe em casas.

O que é que lhe contaram sobre esse período na clandestinidade?

“Bli” — Estive em Sesimbra em 73, mesmo antes do 25 de Abril. Tinha um ano e meio e estava sempre a mexer-me.
Isabel — Na casa da dra. Laura Ayres.

Não saíram de casa durante meses?

“Bli" — Não.
Isabel — Havia cães no exterior e ela queria ir ver os cães.
“Bli” — Devia ser muito complicado. Para a minha mãe, não para mim.

O que é que fazia com ela?

Isabel — Brincava, dava-lhe banho, dava-lhe de comer. Havia um camarada meu... (Pseudónimo: Nuno. A “Bli” conhece bem. O Zé Ribeiro. Ele próprio pôs ao filho o nome de Nuno.

Como a Isabel pôs ao seu filho o pseudónimo do Carlos Antunes, Sérgio.

Isabel — Exacto.)
“Bli” — O Nuno de vez em quando aparecia para me levar um bocadinho à rua.

Quem é que lhe conta estas experiências de que não pode ter memória?

“Bli” — A minha mãe, sobretudo. E o Nuno. E agora estas pessoas que entrevistei [para o livro e o trabalho de arquivo]. Deu-me um enorme prazer.

Foi dessa vez que acabou por entregar a “Bli” à sua irmã?

Isabel — Foi. As histórias relacionadas com os filhos são as mais traumáticas. Nunca me separei do Sérgio. Da “Bli” separei-me várias vezes. Ela foi para a casa da minha irmã e esteve lá até ao 25 de Abril. A minha irmã era uma querida, muito carinhosa.
“Bli” — Não tenho qualquer tipo de trauma. Tinha muito afecto. A minha tia tomou conta de mim apesar dos cinco filhos que tinha. Não senti nenhum vazio.

Decidiu que aquilo não era vida para a miúda.

Isabel — Foi isso. E sabia lá o que é que se ia passar nos tempos mais próximos?

Tinha contacto com o seu pai nessa primeira infância?

“Bli” — Até ao 25 de Abril, sim. Esteve na Argélia, uns seis meses na rádio Voz da Liberdade. Depois do 25 de Abril houve uma cisão familiar e estive uns anos sem o ver.
Isabel — Separámo-nos no 25 de Abril.
“Bli” — Voltei a vê-lo quando tinha nove anos. E gostei muito, foi uma alegria muito grande.

Voltando a 1974, 75: a “Bli” andou sempre com a Isabel. Sensação de medo e de perigo, teve? Tem algum eco disso?

“Bli” — Nunca tive. Tinha imensas pessoas a darem-me atenção, a brincar comigo.
Isabel — Não tinha família em Lisboa, não tinha onde a deixar. Uma vez, um camarada do MPLA que viria a ser ministro dos Negócios Estrangeiros, o Venâncio, veio ter comigo à sede do PRP. A “Bli” vê pela primeira vez uma pessoa africana. “Porque é que este camarada é castanho?”

E dizia “camarada”? Tratavam-se todos por “camarada”?

“Bli” — Sim. Foi a primeira palavra que aprendi a escrever.

Quando é que percebeu que iam ser derrotados?

Isabel — Percebi antes do 25 de Novembro. Vê-se bem pela cara que tenho nos dias que precederam o 25 de Novembro. Houve uma possibilidade de as coisas irem no sentido revolucionário. Em Agosto de 75. É nessa altura que os sininhos começam a tocar para aqueles que não queriam o processo revolucionário. Nesse mês começa-se a organizar o movimento militar do 25 de Novembro, com o general Eanes, o Vasco Lourenço... Estou a dizer isto com a distância de 40 anos. Sou amiga do Vasco Lourenço. Há coisas por esclarecer. É um movimento organizado contra os revolucionários. A esquerda militar e civil não está organizada — nem para fazer um golpe de esquerda (como muitas vezes se fala), nem para resistir a este, ainda que a esquerda militar estivesse presente nos principais quartéis.

Quanto a si, onde é que estava o PC?

Isabel — Em Setembro, Outubro, há conversações com o PC. A base do PC era revolucionária. Alguns estavam armados, com armas do PRP. A direcção do PC queria aquilo que a União Soviética determinasse que tinha de ser. Dá-se uma negociação do PC, nomeadamente com Álvaro Cunhal, com Melo Antunes, que consistiu em não deixar o processo revolucionário ir para a frente, não resistir ao processo militar do 25 de Novembro. Em troca: o PC ser respeitado, não ser proibido. Foi um negócio. Um negócio em que nós fomos peões.

Nós quem?

Isabel — As pessoas que estavam no processo revolucionário. Percebia-se que isto ia acabar assim. E acabou.

Quem é que eram os vossos grandes inimigos?

Isabel — A direita.

É um pouco vasto. E a definição de “direita” então e hoje não coincide. Convém lembrar que chamar a alguém “social-democrata” era um insulto.

Isabel — É extraordinário. Nos discursos do PPD, havia camponeses e operários e posições muito mais à esquerda. Mas o que queriam era a manutenção de uma estrutura económico-social de sistema capitalista. O inimigo era a extrema-direita. Spínola era o líder da extrema-direita. Depois, era uma escadinha por aí fora.

E o Partido Socialista?

Isabel — [No 25 de Novembro] o Partido Socialista fez a opção de se juntar à direita contra o processo revolucionário, sob a justificação de que o PC queria tomar o poder. O PC não queria processo revolucionário nenhum. Esta estratégia é muito clara nos documentos que revelam que Kissinger e Brejnev fazem a sua partilha do mundo. Portugal ficava para o lado americano e Angola para o soviético. Entre o Verão Quente e 25 de Novembro, joga-se isto.

Passados 40 anos, quem é que acha que tinha poder?

Isabel — Os militares tinham muito poder. Os militares que se juntaram à direita (não estou a dizer que eram de direita, mas que se juntaram à direita), porque acharam que era a táctica correcta, tinham poder. Os militares revolucionários tinham também muito poder. O forte de Almada, Estremoz, Setúbal, várias unidades em Lisboa, o próprio Copcon, tinham lideranças de esquerda. Mas não o usaram. E foram depois presos.

Tinha a imagem de a sua mãe ser poderosa?

“Bli” — Mais tarde, sim. Mesmo quando estava presa. Era uma pessoa muito admirada. Lembro-me de me orgulhar porque até pessoas de direita (falo de PPD e CDS) a admiravam. O Francisco Lucas Pires apoiou-a quando foi a greve da fome e quando saiu da prisão. Foi nessa altura que comecei a ter alguma consciência política. Tinha 11 anos, 12.

Falemos das suas prisões. A primeira vez foi quando?

Isabel — Antes do 25 de Abril, duas vezes. Uma vez, a “Bli” ainda não existia e na outra tinha oito meses.
“Bli” — Foste presa comigo ao colo.
Isabel — Tinhas uma touca azul. Foi na sequência da morte do [estudante] Ribeiro Santos. Encontraram um manuscrito meu na Ordem dos Médicos e identificaram a letra. Era para ser distribuído a todos os médicos e dizia que o Ribeiro Santos tinha sido morto. O pai dele era médico.

Nas suas prisões, foi batida?

Isabel — Nunca apanhei. Nunca fui torturada. Mas foram prisões com violência, espalhafato. Uma grande imposição de poder.

Sonha com isso?

Isabel — Não. Os meus maus sonhos são de não ter casa. E, uma vez ou outra, as perseguições, o risco da prisão.
Depois do 25 de Abril fui presa em 78. O meu filho Sérgio tinha uns meses. O pior foi a separação da “Bli”, mais uma vez. O Sérgio ficou sempre comigo. Ela foi ver-me, com o Cal Brandão, nosso advogado, ao Porto. Estive quase sempre em Custóias. A “Bli” atirou-se para o chão e chorou. A dizer que queria ficar com a mãe.“Bli” — Não me lembro de nada disto.
Isabel — Mas de certeza que ficou.

Não pôde ficar com os dois filhos consigo porquê?

“Bli” — Eu não podia ficar porque tinha mais de três anos. Apesar de o meu irmão ter continuado quase até aos cinco. Passei lá períodos de férias. Clandestina.
Isabel — No final da visita, em vez de voltar com a família, ficava na cadeia connosco. Com a cumplicidade das guardas, sobretudo da chefe das guardas, que era uma senhora muito inteligente. O director fechava os olhos.
“Bli” — Divertia-me imenso. Com as prostitutas e as contrabandistas. Além de me contarem as histórias das coisas que faziam, pintavam-me as unhas. Aprendi a fazer
crochet. Sessões de teatro. Falava-se muito da minha mãe em casa, na escola. Na escola, chegou a fazer-se um concurso de cartazes pela amnistia dos presos políticos. A professora era fantástica, a Dina. Espero que leia esta entrevista. Foi uma pessoa muito importante para mim.

“Amnistia pelos presos políticos”: era assim que eram considerados? Foram presos por acções que tiveram que ver com as Brigadas

.Isabel — Nós não tínhamos estatuto de preso político. Mas éramos considerados assim. Entre nós, com certeza. E também na sociedade. Excepto a direita, que achava que éramos delinquentes, terroristas. Dentro das cadeias, tínhamos o respeito de ser pessoas que estavam ali por razões políticas. 

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Isabel do Carmo com a filha: "As memórias que tenho são do jornal, o Revolução. Lembro-me de estar com muita gente à volta, tanto em casa como no jornal. Também passávamos algum tempo no partido", comenta Bli cortesia da família
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Capa do semanário Revolução cortesia da família
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Isabel Carmo, Carlos Antunes e Ernesto de Sousa no 1.º Maio de 1975 cortesia da família/ João Freire
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Bli ao colo da mãe, em finais de 1973 cortesia da família
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Cartaz do PRP cortesia da família
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Bli e o irmão, Sérgio: "Os meus filhos sofreram muito com a minha actividade política", assume Isabel do Carmo
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Lembra-se das cartas que lhe mandou quando ela estava em greve de fome?

“Bli” — Não. Lembro-me de ter algum receio. Fui visitá-la ao hospital com o aviso de que podia perder a vida. Porque iria até ao fim. Vi-a muito magra, muito magra.

Quantos dias esteve?

Isabel — Trinta. Podia ter perdido a vida. O Bobby Sands [guerrilheiro do IRA] foi até aos 50.
“Bli” — Tiveste soro?
Isabel — Não. Só quando nos hospitalizaram em Santa Maria. Aguenta-se mais a beber água. Se a pessoa não beber água, vai-se embora ao fim de menos dias.

Alguma vez pediu à sua mãe para comer?

“Bli” — Não! Nem a minha tia, ao ler as cartas, deixaria que essas chegassem à minha mãe. Uma vez tentei também fazer greve da fome. Mas só aguentei umas duas horas.
Isabel — Fizemos 24 horas de greve da fome com as presas comuns. Pelo cumprimento do estatuto do preso preventivo.
“Bli” — A minha mãe nunca me deixaria fazer mais [do que duas horas], mas deve ter apreciado que eu tenha tido vontade de me juntar. 

Alguém a tentou convencer a comer?

Isabel — Não me lembro de ninguém. O meu pai mandou-me uma carta lindíssima. “Tens de considerar. A Thatcher tinha um coração de ferro e deixou morrer o Bobby Sands. Mas lembra-te também no orgulho que temos, nas pessoas que na América Latina fizeram greve da fome.”

Pensou nalgum momento que ia morrer?

Isabel — Pensei em todos os momentos. A partir de determinada altura, eu sabia (enquanto médica) que podíamos morrer. Fazíamos análises. Quando via os níveis a que estava o potássio... o coração podia parar.

Teve consciência aguda do que estava a fazer. Disse-me uma vez que não há heróis, há causas irreversíveis. É isso?

Isabel — Como é que se pode voltar atrás? Um belo dia acordar e arrepender-me de ter feito esta luta? Não seria possível. Há questões de dignidade que são mais importantes.

Que é que aprendeu mais do que tudo com as histórias da sua mãe nos anos quentes?

“Bli” — Que é importante lutar. Lutar. Sempre com transparência. Tenho muita admiração pelo percurso da minha mãe. Nunca houve cedências a jogos políticos. Sempre houve uma defesa de todos os cidadãos. Nunca houve um interesse senão o de lutar pela igualdade, contra a injustiça. Para que não haja pessoas violentadas. Comecei a trabalhar nisto com 30 e tal anos. Como é que era o meu dia-a-dia com 30 e tal anos e como é que era o da minha mãe?

Sempre a compreendeu?

“Bli” — Sempre. Nunca sequer pus em causa as actividades e opções políticas. Nem posso dizer “políticas”. São cívicas. É a primeira vez que vejo a minha mãe ligada a um partido desde que saiu da prisão. Acho admirável que consiga continuar. Eu nunca vou ter esta energia. O que mais admiro nela? A coerência. E nunca ter cristalizado no tempo.
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