Ultrajes à bandeira só são permitidos na lapela?

Pode não se gostar das cores usadas pelo artista, mas Portugal na forca é apenas um retrato do país.

Na sequência de uma denúncia, o estudante foi acusado pelo Ministério Público de desrespeitar o artigo 332 do Código Penal e foi apresentado a tribunal, devendo a leitura da sua sentença ter lugar no próximo dia 7 de Julho. O artigo do Código Penal em causa diz, no seu parágrafo primeiro, que “quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.

Esta história é tanto mais surpreendente quanto desde há anos que todos nós vemos um grupo de cidadãos, com deveres constitucionais muito mais exigentes que os que se podem atribuir a um estudante de Belas-Artes, desrespeitar não só a bandeira, como os compromissos solenes que assumiram perante o povo, único soberano que existe em Portugal.

De facto, há anos que vemos os membros do actual Governo ultrajar reiteradamente a bandeira nacional, ostentando-a na lapela, ao mesmo tempo que minam a soberania nacional que essa bandeira representa, sem que o Ministério Público tenha tido o mesmo sobressalto.

É para mim difícil conceber o que seja o “ultraje à bandeira”, porque uma bandeira não passa de um pedaço de pano colorido, mas parece evidente que um crime contra um símbolo apenas pode ser considerado um crime porque simboliza um verdadeiro crime. Ou seja: apenas se pode considerar que o “ultraje à bandeira nacional” é um crime, se se considerar que o ultraje à soberania nacional é um crime. Trata-se, de alguma forma, de um crime por metonímia. O que não faz absolutamente nenhum sentido é considerar que o “ultraje à bandeira nacional” é um crime porque a bandeira representa a soberania nacional, mas que um atentado contra a soberania nacional, submetendo o país aos interesses de potências estrangeiras e ignorando os direitos do povo soberano, não tem a mínima importância.

É verdade que essa foi a atitude do Estado Novo que, como todos os regimes nacionalistas, tentou impor um culto religioso e temeroso dos símbolos, das bandeiras, dos hinos, das fardas e dos emblemas nacionais, ao mesmo tempo que atropelava os direitos do povo, mas nesse caso tratava-se de impor o medo, criando tabus cujos juízes eram os usurpadores. Esta atitude não tem sentido num país democrático. É tão ridículo o processo movido contra o estudante Élsio Menau, como o que foi aberto (mas logo fechado) contra Cavaco Silva e António Costa por terem içado a bandeira nacional de pernas para o ar no 5 de Outubro. Se, no último caso, se tratou de um acidente, no primeiro tratou-se não só de um acto de criação artística, mas de uma declaração política, em que se denuncia uma situação de absoluta indignidade e de risco de sobrevivência para o país. Portugal na forca é, apenas, um retrato do país. Pode não se concordar com a perspectiva ou não se gostar das cores usadas pelo artista, mas é apenas um retrato. Em que consiste o seu suposto atentado a valores essenciais? Em nada. Que prejuízos causa? Nenhum. O processo e julgamento contra o seu autor não pode ser considerado outra coisa que não um processo político, que pretende domesticar o protesto cívico – tantas vezes de mãos dadas com a liberdade artística. Um péssimo serviço à soberania e, pior ainda, à democracia.

Os seus defensores sublinham que o estudante tratou a bandeira “com respeito” – e, de facto, é difícil ver aqui algum ultraje a alguém ou a algum valor moral –, mas a questão não é essa. A liberdade artística, que não é mais do que a liberdade de expressão, contém um valor que é socialmente superior ao “respeito” dos símbolos e das instituições. O “respeito” dos símbolos e das instituições não é mais do que uma imposição do statu quo, que está na base de todas as limitações de liberdade e da perpetuação de todas as opressões. O discurso dos direitos humanos sempre foi um discurso contra o “respeito” das autoridades instituídas e dos seus símbolos. É evidente que pode haver abusos da liberdade de expressão que sejam sentidos como uma agressão e que provoquem uma repulsa violenta generalizada, mas Portugal na forca não se encaixa nessa categoria. Tudo o que faz é obrigar-nos a discutir o país. E a reparar naquelas bandeirinhas de lapela que os governantes ostentam, com um sorriso descarado de impunidade.

jvmalheiros@gmail.com

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