Tito Zagalo pelo Natal
Mesmo zangados com a vida, os Portugueses comem e bebem. Apenas agora com mais azia.
Meu caro, ao entrar nas grandes superfícies dir-se-á que a crise passou. Não me admira que se registe grande aumento de consumo em relação ao ano de fome que foi 2012, diz-me Tito, entre surpreendido e satisfeito. Sabes, Tito, num país onde a sector público tem grande peso no PIB, a devolução dos subsídios faz-se logo sentir no consumo agregado. A economia deve essa melhoria ao Tribunal Constitucional. Mas também noto que há mais gente jovem, educada e com poder aquisitivo, que encontrei no aeroporto e vejo nos restaurantes, diz-me Tito. Pois é, são emigrantes da classe alta, como tu. Mas se é bom saber que trazem dinheiro, é triste reconhecer que cerca de 120 mil dos nossos melhores braços e cabeças trabalham lá fora. Normalmente separados das famílias e só o fazem por a Pátria lhes negar trabalho. Vejo que choveu desalmadamente, neste Natal e tanto que te queixavas de quase três meses de seca, responde Tito! Pois é, menino, mas a chuva agora chega sempre de enxurrada, tudo arrasta. Também vi menos gente nas filas do Centro de Emprego, esta manhã, não me digas que não reconheces que o desemprego baixou? Parece que sim, respondi, e ainda bem, mas não nos iludamos, pois os que faltam nas filas são os que emigraram ou os que já desistiram de ter emprego. Segundo estudo recente, estes últimos serão já 45% do total, mais de 400 mil!
Vejo que continuas pessimista, ácido, descrente, tens que mudar de atitude, meu caro, o mundo não está todo contra nós, responde Tito. Olha o mercado de habitação, até parece mais animado. É verdade, respondi, estão a vender-se mais casas, só que bastante mais baratas, o que não quer dizer que as vendas correspondam a um mercado regular, podem até ser um mercado do desespero. Mas, e o Primeiro-Ministro não garantiu que a crise estava a passar? E que o próximo ano seria decisivo para crescer, produzir, exportar e empregar? Oh meu Tito, como é que tu ainda acreditas em contos de fadas! Não viste como o homem provocou o artifício estatístico de confundir 20 mil com 120 mil empregos criados?
Tito ficou surpreendido, disse-me, mais tarde, que não compreendia como um governante com a mais alta responsabilidade pode cair num erro tão grosseiro. Nos EUA seria fustigado, fosse por tentativa de engano, fosse por erro grosseiro, aqui tudo se tolera. Mas olha, contemporiza Tito, o Comissário Olli Rehn elogia Portugal e confirma o optimismo. Pudera, Tito, que pode ele fazer, até vai aceitar que o défice de 2014 sejam os 4,5% que recusou há três meses, o que não quer é admiti-lo ex-ante, seria reconhecer o erro da austera receita. Acredita, Tito, a Europa está disposta a tudo tolerar para que, ao menos o caso de Portugal não seja um fracasso, como a Grécia, já que a Irlanda fugiu a sete pés de tão incompetentes curandeiros.
Tens de ver todo o quadro e não apenas o presépio do Governo: os bancos aflitos a recuperar liquidez, emitindo obrigações e vendendo activos; o orçamento para 2014 cheio de ameaças de inconstitucionalidades e óbvias rupturas, com o Presidente a empurrar o drama para o meio do ano, amalgamando rectificativos, eleições europeias e o fim da intervenção, sem sabermos o que se segue. Nunca como agora tanta incerteza foi acumulada. Já imaginaste, como salientou o Pedro Adão e Silva, o que é um pequeno País com um PIB de 170 milhões, vê-lo recuar 8 milhões em três anos, com a dívida na estrato-esfera, os juros da soberana sem baixarem, o desemprego multiplicado por quatro e o fosso das desigualdades alargado? Já viste como a esquerda à esquerda do PS responde? Cindindo-se em sucessivas fracções, tentando sempre enfraquecer o PS, o grande corpo de que se alimenta. E à direita? Vemos o ventre elástico, que absorve toda a discrepância regurgitando aqui e ali vagos radicalismos. Encostando-a, cada vez mais, à sua própria direita. Mas e o Presidente, que faz ele, pergunta Tito? Meu caro, em Belém mora agora a pacatez, não a estrela que nos guie.
Meu amigo, responde Tito, ides ter eleições europeias e com elas uma possibilidade de renovação do Governo. Sim, é verdade, mas das europeias pouco de novo se espera entre nós, talvez mais lá fora. Quando muito o PS conquistará dois ou três lugares à direita, perdendo a extrema-esquerda pelo menos um dos cinco que episodicamente ganhou em 2009. Mas que significado terá esse resultado, caso se verifique? O mesmo que o resultado das autárquicas. O Governo não mudará de política, talvez apenas de protagonistas, libertando-se dos pesos que o afundam na educação, nas finanças, na segurança social, porventura noutros domínios. O País pouco ganhará, Tito!
Parámos de conversar por nos chamarem para mesa. Mesmo zangados com a vida, os Portugueses comem e bebem. Apenas agora com mais azia.