Será que ainda se justifica a existência de um sistema binário no ensino superior?
Reconhecer o esgotamento do sistema binário é assumir um facto crucial para que a necessária reorganização da rede de ensino superior.
Então, porque se optou em Portugal por um sistema binário? A opção foi seguramente condicionada pela estrutura social e cultural da sociedade portuguesa, aliada à ausência de quadros qualificados capazes de assegurar a expansão do sistema de ensino superior.
Os patamares de frequência de ensino superior que se pretendiam atingir como resposta à exigência de modernização da estrutura produtiva e serviços, numa aproximação aos níveis dos restantes países da OCDE, não eram alcançáveis com a oferta dos cursos tradicionais das universidades.
Ora, na época, a base conservadora e elitista da universidade portuguesa, não consentia que essas formações de natureza profissional — contabilidade, solicitadoria, educação de infância, professores do ensino básico, jornalismo, música, dança, enfermagem, serviço social, etc. — pudessem vir a ser realizadas no seu seio.
Esta foi a principal razão cultural para que a solução viável para a expansão do ensino superior tivesse que ser assegurada pela criação de dois subsistemas: um centrado nas formações tradicionalmente universitárias — medicina, direito, humanidades, engenharia de projeto, ciências, etc. — outro nas formações ditas “profissionalizantes”, no sentido técnico que as enformava. Esta diferença de estatuto académico entre os dois subsistemas era sublinhada pela designação e duração das respetivas formações iniciais: as primeiras, universitárias, designadas por licenciaturas com uma duração de 5 e 6 anos e as segundas, politécnicas, designadas por bacharelatos com duração de 3 e 4 anos.
Trinta e seis anos depois da criação do atual sistema binário, embora existam progressos assinaláveis, continuamos sem ter atingido plenamente o objetivo da massificação do ensino superior — em 2012, e de acordo com dados da OCDE (Education at a Glance, 2014, Tabela A1.3a.), 19% dos portugueses tinham um curso superior, quando a média deste indicador nos países da OCDE era de 32%, chegando o Canadá aos 53%. Só a Turquia, com 15%, estava pior do que Portugal.
Mas, neste período temporal, registaram-se mudanças profundas no ensino superior motivadas, essencialmente, pelas transformações progressivas dos modelos económicos e sociais (nacionais e globais), a consequente readequação da missão das instituições de ensino superior, a crise do financiamento público, ou a regulação transnacional, em especial o chamado ‘processo de Bolonha’.
Com efeito, o processo de Bolonha veio uniformizar a duração e designação dos ciclos de estudo na Europa e, assim, acabar com uma das principais marcas da diferença entre universitário e politécnico: a designação e duração dos cursos. Hoje os dois subsistemas oferecem, em igualdade de circunstâncias, o 1º ciclo — Licenciatura — com 3 anos de duração e o 2º ciclo — Mestrado — com 3+2 anos de duração.
Simultaneamente, a pressão dos mercados e da sociedade e a competição para atrair o maior número de alunos possível, levaram as universidades a abrir progressivamente a sua oferta formativa a cursos de natureza profissionalizante, que antes declinara a receber. Hoje, com exceção da formação em enfermagem, todas as áreas de formação do politécnico são lecionadas em faculdades ou escolas universitárias (e não nos referimos aqui às escolas politécnicas existentes em algumas universidades).
A estas mudanças junta-se, ainda, a alteração ao estatuto das carreiras docentes do ensino superior universitário e politécnico que, desde 2009, passaram a ser análogas em termos de exigência de qualificação académica e de categorias profissionais. Em ambas as carreiras — universitária e politécnica — ingressa-se com o doutoramento e em ambas é necessário o título de agregado para atingir o topo da carreira, sendo os índices salariais os mesmos para as categorias equivalentes. Em consequência desta exigência a percentagem de doutorados no corpo docente dos institutos politécnicos aproxima-se, hoje, dos 50%, (número que as universidades portuguesas, recorde-se, só atingiram em 2002).
Em suma, tudo o que em 1979 poderia ter justificado a existência do sistema binário e diferenciava um politécnico de uma universidade, já não existe, já não se justifica ou está em vias de se tornar obsoleto.
Reconhecer o esgotamento do sistema binário é assumir um facto crucial para que a necessária reorganização da rede de ensino superior — com formações excessivamente idênticas, numa rede demasiado extensa e pulverizada, pobre de conexões e fluxos que devem animar uma verdadeira rede — possa acontecer.
É imperioso que o exercício de repensar o sistema de ensino superior existente se foque em perceber como é que Portugal pode expandir, de forma equilibrada e inclusiva, os níveis de qualificação superior dos cidadãos. Este é o objetivo central que não pode ser escamoteado, erigindo falsas distinções e barreiras que criam um véu opaco que desvia as atenções do essencial e impede uma visão clara e contextualizada do problema.
Libertos da falsa dicotomia universidade/politécnico, geram-se as condições para que o debate se centre sobre aquilo que consideramos urgente, ou seja:
1) Diferenciar as instituições, não pela sua natureza jurídica, mas pela natureza dos seus projetos educativos e formativos — universidades de investigação/ensino, globais /regionais, técnicas/ clássicas, ou outras — com perfis ajustados a necessidades e interesses distintos.
2) Fomentar a partilha ou junção de instituições, segundo critérios de proximidade adequados a um autêntico redimensionamento da rede, ganhando escala e músculo, pela concentração de massa crítica, potencial investigativo e de articulação aprofundada com o meio, tornando as instituições mais competitivas, mais atrativas e diferenciadas.
3) Gerar dinâmicas de valor acrescentado no posicionamento a nível internacional, quer na captação de estudantes internacionais, quer na participação em redes de ensino e investigação.
Ficar tudo como está (ou mais ou menos, num toque de cosmética) é meter a cabeça na areia, empurrar com o problema para a frente, ignorando a situação limite de muitas instituições; desconhecer as macrotendências do mundo contemporâneo e o papel que pode caber a Portugal num horizonte global, aberto e altamente competitivo. É hipotecar o futuro ao preconceito, pondo em causa o futuro de muitos portugueses.
Rosário Gambôa, Presidente do Politécnico do Porto
Rui Antunes, Presidente do Politécnico de Coimbra
Vicente Ferreira, Presidente do Politécnico de Lisboa