Saudades da censura?
Os tribunais, por vezes, prestam-se a tristes tarefas.
A última condenação de Portugal foi noticiada aqui no PÚBLICO no dia 11 pelo jornalista Pedro Sales Dias e reportava-se ao livro A Pátria Fomos Nós, escrito pelo jornalista Afonso de Melo. Nesse livro, Afonso de Melo, que trabalhava para o seleccionador nacional de então, Felipe Scolari, considerava o presidente do Futebol Clube do Porto (FCP) um “inimigo figadal” da selecção nacional e referindo-se aos diversos processos crime que, na altura, contra ele corriam, apelidou-o de “campeão dos arguidos”.
O presidente do FCP, como sempre, como o presidente do Governo Regional da Madeira ou outras figuras públicas que prezam muito a sua impoluta reputação, queixou-se criminalmente contra o jornalista.
E não teve, com certeza, dificuldades no Tribunal de Vila Nova de Gaia em conseguir a condenação do jornalista em 2600 euros de multa e cinco mil euros de indemnização para si. Para este tribunal, era evidente que as expressões “inimigo figadal” da selecção nacional de futebol e de “campeão nacional dos arguidos” eram objectivamente difamatórias. Quis com isto dizer o tribunal que, independentemente do que o presidente do FCP tivesse dito ou feito, nada justificava o uso daquelas expressões que por si só – objectivamente – impunham a condenação! Esta triste visão do que é o espaço e o papel da liberdade de expressão, embora eu já a considere minoritária no nossos tribunais, ainda é uma triste e frequente realidade.
Mas mais interessante, ainda, para perceber como os nossos tribunais nos apascentam, como diria Vasco Pulido Valente, é a forma como o Tribunal da Relação do Porto (TRP) decidiu o recurso do jornalista. E dizemos o Tribunal da Relação do Porto e não identificamos os juízes desembargadores em concreto, assim fazendo a injustiça de criticar todo o Tribunal da Relação do Porto, porque continuamos a viver num país em que as decisões dos tribunais e os nomes dos seus autores são publicados ou não, isto é, são conhecidos ou não pelos cidadãos portugueses em geral, por critérios que ninguém conhece, que não estão publicados em lado algum. Se convém publicar-se, publica-se, se não convém, não se publica. O que é que determina as conveniências ninguém sabe, mas talvez o Conselho Superior de Magistratura um dia se possa interessar pelo assunto. A Bem da Nação.
Mas o que interessa, agora, é a forma como o Tribunal da Relação do Porto conseguiu manter a condenação do jornalista. Em primeiro lugar reconheceu que afirmar que o presidente do FCP era um “inimigo figadal” da selecção nacional não podia ser considerado atentatório da sua reputação mais não era do que uma opinião, na minha opinião algo visceral, mas sem qualquer contundência sequer.
Mas a ousadia do jornalista que “atacara” a mais alta figura nortenha do nosso mísero Estado não podia ficar impune e, então, o TRP considerou que a utilização da expressão “campeão nacional dos arguidos” era difamatória porque esse não era o objecto do livro! Porque o jornalista não pretendera informar os leitores sobre esse assunto! O jornalista até nem sabia quantos processos corriam contra o presidente do FCP! A utilização daquela expressão tinha sido efectuada fora de contexto com o fim de qualificar pejorativamente a situação vivida por ele naquela época, com o “único objectivo de o denegrir e de o diminuir”!
O TRP conseguiu, assim, descobrir que o que era grave não era a expressão “campeão nacional dos arguidos”; não, o que era grave era a expressão ter sido utilizada num contexto em que não era necessária! Em que não se justificava! Em que só por maldade é que o jornalista a tinha utilizado! E isso, o Tribunal da Relação do Porto, como em tempos a Inquisição ou, mais recentemente, a Censura e os Tribunais Plenários, não podia permitir!
Haja quem defenda os poderosos das maldades, desrespeitos e faltas de subserviências dos jornalistas e outra canalha!
Felizmente para o jornalista e para todos nós, o pasto que temos o direito de comer enquanto somos apascentados sempre é de uma qualidade superior à que os pastores nos querem dar.
Afonso de Melo queixou-se ao TEDH da forma miserável como a justiça portuguesa o tratara e este tribunal lá explicou, mais uma vez, que a liberdade de expressão quando estão em causa figuras públicas, quando estão em causa opiniões minimamente fundamentadas, quando estão em causa questões de interesse público, pode ser dura e contundente e, sobretudo, deve ser muito ampla numa sociedade democrática. E, assim, em 23 de Julho de 2013, condenou Portugal a indemnizar o jornalista por ter visto violada a sua liberdade de expressão.