Rui Ramos no Canal Q: um novo António Sardinha?
O novo Sardinha vê tramóias em todo o lado, porque constrói o mundo à sua imagem.
Com obra feita e de reconhecido valor, consta, diz tudo o que lhe vem à real gana. Mas, à cautela, nunca foi em conversas: à política chegou como intelectual com créditos firmados e não como funcionário de partido. Não é como os outros que chegaram bem mais alto, mas à custa de diplomas de origem duvidosa.
Subiu a pulso. Logo após, desfez-se da escada para que mais ninguém lá chegasse. E adoptou os tiques que observou nos snobes. Inspirado em Maurras, misturou-o num blend com outros, tudo autores já publicados pelo Liberty Fund, em encadernações bem cheirosas. Monárquicos, conservadores e uma elite ignara começaram a vibrar com as suas realidades pesadas, donde não está ausente uma ponta de crueldade. E ele não se faz rogado.
– Ena, como vai lançado no seu gosto pela polémica! Estou certo que um dia conseguirá beijar a mão do putativo rei. Ou será que lhe dão mesmo um ministério?
Às suas audiências dá aquilo que elas querem. Indigna-se frente ao despesismo do Estado. E despreza essa esquerdalha de jovens investigadores que, no fundo, não passam de uns comunistas ou ainda pior...
Exímio na arte do paradoxo, partilha com os que não se souberam arranjar uma óbvia denúncia: porque tarde chegaram, foram todos enganados quando alimentaram falsas expectativas em relação a um futuro dedicado à ciência e à investigação. No seu realismo cru, nega-lhes a carreira. Porquê? Simplesmente, porque o despesismo é insustentável. E essas crianças grandes, que se deixaram embalar pelo estudo e pela pesquisa, têm de cair na realidade. Na dura realidade, entenda-se, da sua inutilidade.
Não há alternativa, para tanta evidência. Só talvez a emigração, sempre ela, pode oferecer uma outra via. Porque lá no estrangeiro – provavelmente porque foram todos enganados por um outro trapaceiro – ainda continuam a investir na pesquisa e a preocupar-se em acolher novas gerações de investigadores.
– Olha, Daisy, os coitados lá na estranja, caíram na trapaça. Os tristes continuam a financiar publicamente a investigação.
É que se o despesismo é inútil, porque se constituiu num fardo insustentável, é também escusado pensar-se que exista alguma relação causal entre investigação e desenvolvimento. Tudo uma série de inutilidades. Retire-se, pois, o Estado de tudo isto e deixem em paz os decisores políticos – ministros ou responsáveis por agências de financiamento público – que nunca se deveriam ter envolvido em programas criadores de falsas expectativas e de despesas em espiral.
Devolva-se, isso sim, a responsabilidade às universidades, que se devem comportar de forma autónoma. Mas, esclareça-se desde já, em relação aos que mandam nestas últimas, que devem deixar de se preocupar com o aumento do seu número de investigadores e com a integração de novas gerações na pesquisa. Directores e responsáveis, parem com tais lamúrias insensatas! Basta de tal tipo de erro crasso! Malditos sejam os que o fizerem, sobretudo em jornais! Lá na utopia do propalado liberalismo, as universidades e os centros de investigação nem sequer deveriam depender dos fundos públicos e do Orçamento.
– Olha, Daisy, por que razão não estamos na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos, onde as grandes universidades privadas são mesmo autónomas financeiramente, com os seus states e endowments milionários? Isso é que era bom para que o liberalismo de pacotilha se difundisse.
– Aqui, no terrunho, tirando as idas à televisão e as vendas dos livros a subir em flecha, tudo o resto é uma chatice. Não que a pátria não exista, com as suas tradições e gente importante digna de biografias que se vendem lindamente. Mas o Estado, ao ter de assumir responsabilidades e ao não deixar crescer as crianças que, na sua adolescência retardada, vivem à sua custa, cria esta chatice, menino! Um autêntico ferro!
“Transforma-se o amador na cousa amada”, como o trapaceiro com a trapaça. A trapaça dos últimos governos que criaram uma ilusão, que enganaram as crianças grandes (pelo menos as que resistiram à emigração) e que alimentaram falsas ideias acerca da criação de um sistema científico. Uma tramóia insuportável, alimentada à custa das loucuras do despesismo do Estado, com que é necessário romper.
O novo Sardinha vê tramóias em todo o lado, porque constrói o mundo à sua imagem. Com a consciência das duras realidades, chama a si a inimputabilidade e uma estratégia de vitimização. Aos seus amigos sopra-lhes a ideia de que a investigação é coisa obscurantista. Por isso, há que reduzi-la e dispensar os que a ela se dedicam. Melhor será fazer como antigamente, só para alguns, muito poucos. E, num estilo sério, mesmo muito sério, o Sardinha new age finge não suportar o estilo chocarreiro deste seu retrato.
– Olha, Daisy, até que, se se tiver em conta o novo Álbum de Glórias de que este retrato chocarreiro faz parte, nem é assim tão mau. Verás que a notoriedade sobe.
Pouco importa que quem defende que o Estado se retire – aliás, de onde nunca esteve, a julgar pelo que se faz por essa Europa fora – continue a ser um funcionário público, que não abdica de nenhum dos seus cargos e privilégios. A moral de apregoar aos outros aquilo que o próprio não pratica só tem um fundamento: não somos todos iguais, os que já se safaram e que são os beneficiários do sistema não querem partilhar com mais ninguém a estabilidade e tudo o que é bom. A eles o mandarinato e os privilégios, aos outros a dura realidade.
– Tudo o resto, menino, uma chatice em relação à qual só me resta exprimir a minha dramática indignação: que ferro!
Historiador