Ricardo Salgado é um doce

A reportagem da RTP foi uma inacreditável lavagem de Salgado. Entrou na máquina um banqueiro com fama pública de trafulha e de burlão e, após 30 minutos de ensaboadela, saiu um banqueiro azarado, tramado pela família e pelo Banco de Portugal.

A questão não está no anódino texto em off – está nos frisantes depoimentos. Valia a pena alguém fazer uma reportagem sobre a reportagem, para percebermos como é que os convidados foram ali parar e as ligações que cada um tem a Salgado e ao BES. A primeira frase sai da boca de Mário Soares: “Muitas pessoas em Portugal já perceberam que foi uma grande asneira ter arranjado este sarilho todo.” Reparem na expressão “arranjado este sarilho”: não foi Salgado que desvairou, foi o Governo que o ensarilhou. Mais à frente, Soares esclarece: “Eu estou convencido que ele não disse a última palavra. E quando o disser, as coisas vão ficar de outra maneira.”

O jornalista Jorge Almeida também deve acreditar nisso, já que a reportagem termina assim: “Ricardo Salgado tem pela frente a maior batalha da sua vida: limpar o nome da sua família e provar, no banco dos réus, a sua inocência.” E para isso, nada como uma reportagem composta pelo depoimento de 12 personalidades, que até dá para exibir como prova de defesa. Com excepção das jornalistas Maria João Babo e Maria João Gago, autoras do livro O Último Banqueiro, que mantêm uma certa distância em relação a Salgado, todos os outros entrevistados ou o defendem ou estão incrédulos. Jorge Almeida não conseguiu encontrar uma alminha – uma só – que se sinta enganada, roubada, injustiçada e que resolva dizer cobras e lagartos de Ricardo Salgado. O jornalista só encontrou amigos.

que amigos: Mário Soares, Miguel Veiga (que define Salgado como “um homem com mão de ferro em luva de veludo” e classifica a acusação de ilegalidades de Carlos Costa como “tendenciosa, prematura e injustificada”), Murteira Nabo, Carlos Monjardino, os “incrédulos” funcionários José António Antunes e Carlos Silva (“as pessoas ficaram com um género de orfandade”, diz o secretário-geral da UGT), Michael de Mello (que chama “pessoa muito impulsiva” a José Maria Ricciardi, acusando-o de levar a discussão da sucessão da família para a rua), Eduardo Catroga (“acho exagerada a imputação de responsabilidades a nível de grupo apenas ao doutor Ricardo Salgado”), e ainda dois veteranos da banca espanhola, Jaime Carvalhal e Emilio Ybarra, a declararem em uníssono a sua “grande surpresa” e a lamentarem a “tragédia”, “não só para família e accionistas, mas também para Portugal e para a economia portuguesa”. Nem sequer falta uma cotovelada ao Crédit Agricole, através de uma publicidade do próprio banco francês: “A crise actual não vem dos bancos, vem dos Estados.”

O programa da RTP onde a reportagem passou chama-se Linha da Frente, mas a mim pareceu-me mais a linha de retaguarda de Salgado a funcionar a todo o vapor. Preparemo-nos, que o spin já aí está: o governo e a guerra familiar foram os responsáveis pela queda do BES, tivesse o mundo mantido a confiança em Salgado e o banco estaria rijo que nem um pêro, e blá, blá, blá. Lógica, a coisa tem pouca. Só que a falta de vergonha distribui lucros muito elevados. 

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