Quanto mais primo, mais assassino

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Antes de se acenderem os fornos de assar bois, o que não veio a acontecer por dificuldades inesperadas que todos conhecem, na noite da Consoada, o dr. Ricardo Salgado virou-se para a família que enchia o salão da Quinta da Marinha e, no espírito harmonioso da quadra, desejou:
— Feliz Natal a todos, menos a um.

O dr. Ricciardi, mais expansivo do que o primo dr. Salgado, estando no lado oposto da sala, com o nariz dentro de um cálice, interpretou abusivamente a frase como um comentário à sua presença. Isso agora não interessa, uma vez que a concórdia regressou à família, mas, na opinião do dr. Salgado, o sanguíneo dr. Ricciardi ajudou a afundar a sua governance... E a ajudar ao desaparecimento do BES, perturbando o mês de Natal do povo — afinal de contas, são os portugueses os “donos disto tudo” — com intermináveis directos da Assembleia da República, em vez  do Natal dos Hospitais e do Circo do Mónaco.
— Mais uma infâmia do dr. Mentiras, disse o dr. Ricciardi.
— Nunca me ouvirão dizer mal da minha família, incluindo de quem de certeza recebeu contrapartidas do Banco de Portugal, da troika, do Governo e dos angolanos para me trair.
— As vergonhas que temos de aturar. Primos e primas! Antes de saírem, confiram se ainda têm as carteiras. Anda para aí um líder centralizador que faz desaparecer coisas no ar.
— Oh eu, vítima da maldade do mundo. Um leopardo quando morre deixa a sua pele, e um homem quando morre deixa a sua reputação, como dizem, parece-me, uns chineses de cara de arroz que compram vistos gold como eu comprava partidos políticos!

Mas ninguém ouviu esta inocente troca de palavras porque os homens jogavam às moedas e as mulheres, nas cozinhas, lutavam por um quilo de açúcar, enfarinhando os vestidos na confecção de bolos. Como eram doces para vender nos restaurantes de Cascais, aquilo que enchia as mesas do salão, se vistas de perto, não passava de adereços de plasticina com a forma de croquetes, mais azevias e filhoses amassados em papelão. O peru, uma bola de futebol pintada de castanho, oferecida por uma SAD em falência técnica, e as pernas do assado as metades de dois tacos de golfe. As lagostas, garrafas de óleo cortadas ao meio, pintadas de laranja.

Ideia do dr. Salgado: ninguém de fora imaginará coisas falsas sobre as mesas do centenário banqueiro e empresário. Mas uma sombra caiu por instantes debaixo do pinheiro. As crianças — os pequenos inocentes! — imitavam os pais nas casitas da Comporta, brincando aos pobrezinhos com latas de atum e velas de cera, queimando os tapetes.

Tropelias adoráveis, imaginações prodigiosas, talentos para a contabilidade criativa. Mas... mal sabem o que as espera se um dia não lhes dermos os códigos das contas secretas off-shore, pobres anjinhos, pensava o dr. Salgado, preocupado com a comunidade em geral e com a família em particular (menos com o dr. Ricciardi, que “tem um comportamento no mínimo curioso” e devia ir morrer longe).

Se o Banco de Portugal e o juiz Alexandre não param com os disparates, estas crianças terão de trabalhar aos sábados no resto da vida, como o avô.

Tocou à porta o empresário J. Guilherme. Trazia uma prenda que encheu de alegria o clã unido na comunhão natalícia.
— Venho com o espírito de entreajuda e solidariedade, como diz o dr. Maia da Universidade de Coimbra.
— Estou com pouco dinheiro para pagar mais pareceres desses... Já estava a estranhar a falta da sua amizade pessoal.
— Dr. Salgado, os amigos são para as ocasiões. Trouxe 14...
— ... milhões? Outra vez, meu amigo? Finalmente um justo na Terra.
— Ahhh, não. Como é Natal, é para comer. São 14...
—... faisões, das suas caçadas?...
— Não. Catorze coscorões. Fritos pela minha tia. É para tirar as suas manas da cozinha, bem merecem um Menino Jesus.

Depois, apareceu o Pai Natal P.Q.P. que reinou com o dr. Salgado.
— Tu tens um problema, pá, não lidas maravilhosamente com a verdade.
— E tu não lidas maravilhosamente com a comida, pá.

Mas no final comeram todos um leopardo assado no forno, que estava óptimo. E o Natal de 2014 foi lindo porque o dr. Salgado vendeu a pele na Feira da Ladra, numa operação perfeitamente legal, e as contas do grupo batem outra vez certo, como ele sempre disse.

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