Ponto de partida desencantado

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Cai uma chuva miudinha que deixa tudo acinzentado à volta. Passa pouco das 8h de um domingo de manhã e as ruas do centro do Porto estão libertas de trânsito. Estaciono na Rua de Alexandre Herculano, junto ao edifício que funciona como ponto de partida e chegada de muitas camionetas que cruzam o país. Vou deixar uma amiga, que vai apanhar o expresso das 8h30, para Viseu. E dou por mim a pensar que me custa deixá-la ali, naquele sítio escuro e tão diferente do Porto animado e colorido que anda por aí a conquistar corações.

Se fecho os olhos e procuro as memórias que guardo daquela estação, o que surge primeiro não é uma imagem, mas o cheiro. O cheiro forte deixado pelos motores em funcionamento num espaço confinado. É um cheiro intenso e irritante, a pedir ar fresco urgente. Neste domingo de manhã o cheiro não está lá e eu animo-me com essa ausência, mas a minha amiga, que tem usado mais aquela estação nos últimos anos do que eu, não se deixa enganar: “É por ainda ser cedo e estarem cá poucas camionetas.”

Há uns vinte anos fui ali algumas vezes, apanhar uma camioneta ocasional para Lisboa ou Fundão. Não gostava do local, que me parecia sempre triste e escuro. O cheiro acre, as paredes sujas, a ausência de qualquer elemento que animasse aquela gigantesca garagem, deixava-me sempre com uma vontade enorme de sair dali depressa. Que a camioneta não se atrase, que eu possa entrar rapidamente e sentar-me no meu lugar, fechando os olhos ao que fica no exterior. Acho que estes eram os pensamentos que me ocupavam durante os minutos de espera até à partida.

No domingo de chuva em que lá regressei, ia curiosa para ver como estava aquele local desencantado de partida. A dispersão dos vários terminais de camionetas do Porto é um tema recorrente entre aqueles que definem as políticas da cidade. Há anos que se defende que algo tem de mudar, que alguns dos espaços têm de, simplesmente, desaparecer, que há que criar novos interfaces. Até agora, não houve grandes mudanças, mas fala-se de novo na construção de uma estação intermodal em Campanhã e, se ela avançar, talvez esta estação se mude para lá. Por enquanto, na Alexandre Herculano, quase a chegar à Praça da Batalha, com o Teatro Nacional de S. João já à vista, pouco mudou.

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A bilheteira está ao fundo da garagem, depois do espaço amplo onde param as camionetas. Acho que já era ali que eu comprava os meus bilhetes, mas não tenho a certeza. Contudo, o aparato por trás do vidro onde está o funcionário parece-me mais moderno. Observo-o enquanto repete para o microfone que já não falta muito para a partida da camioneta que nos levou ali e cujo destino final é Portalegre. É um silencioso domingo de manhã e aquele é o único transporte que vai partir, pelo que o aviso dito duas vezes para o microfone me parece algo desnecessário, mas o homem, diligente, só nos vende o bilhete esperado depois de explicar que a camioneta das 8h30 pára em Viseu, Mangualde, Celorico da Beira, Guarda, Covilhã, Fundão, Castelo Branco e, se tudo correr bem, sete horas depois, em Portalegre.

Aproveito para observar o conjunto de cadeiras protegidas por paredes envidraçadas onde estão sentadas algumas pessoas. É uma sala de espera com vista para as camionetas que se preparam para partir ou que estão a chegar. Não me recordo dela nos anos em que a viajante era eu, mas esta pequena melhoria sabe a pouco quando olhamos para o tecto que deixa passar uma luz embrutecida pela sujidade das placas semitransparentes.

Está na hora da despedida. Olho em redor, para as paredes com ar cansado e triste. Vai-te embora, vai-te embora depressa. Lá fora chove mas o horizonte é mais largo. E quando regressares, se for ainda no mesmo sítio, salta da camioneta e vai para a rua depressa. A estação de Alexandre Herculano está mesmo a precisar de uma dose de alegria.

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