Perigo no exame de Português de 12.º: o acordo ortográfico
O respeito pelo percurso destes alunos impõe que se continue a aceitar as duas ortografias, tal como acontecia até ao ano passado.
Procurando evitar repetições, limitar-me-ei à análise dos prejuízos que os alunos poderão sofrer no exame de Português de 12.º, tendo em conta que, segundo as instruções do Instituto de Avaliação Educativa (Iave), este ano “apenas será considerada correcta a grafia que seguir o que se encontra previsto no Acordo Ortográfico de 1990 (...).” (Informação-Exame Final Nacional, Janeiro de 2015). Nos exames de 2014, os estudantes tinham a possibilidade de recorrer às grafias de 1945 ou de 1990.
No exame de Português de 12.º, um aluno pode perder até quatro valores devido a erros ortográficos, facto que qualquer pessoa poderá confirmar, bastando, para isso, consultar os critérios de classificação disponíveis no site do Iave. Relembre-se que este exame, além de ter passado a ser obrigatório para a conclusão de qualquer curso do ensino secundário, é, muitas vezes, prova de acesso exigida por vários cursos superiores, pelo que a nota aí obtida pode ser decisiva para o futuro dos jovens.
Podemos discordar do sistema de acesso à universidade, mas a realidade é que, tal como está, a entrada num determinado curso pode depender de décimas preciosas, pelo que é do mais elementar bom senso não acrescentar obstáculos escusados.
A disciplina de Português tem estado sujeita a alterações constantes, nomeadamente no campo da gramática e da ortografia, para fazer referência a duas áreas em que os alunos sujeitos ao exame de 12.º foram obrigados a aprender duas terminologias e duas ortografias ao longo da sua vida de estudantes, o que, só por si, torna difícil ou mesmo impossível a consolidação de aprendizagens.
Entretanto, o debate sobre o AO 90 continua na ordem do dia. Os seus problemas de concepção foram já amplamente demonstrados. Também em consequência disso, os erros de aplicação são tão evidentes que é possível falar-se num verdadeiro caos.
Note-se que aquilo que poderemos designar por problema ortográfico já existia antes do acordo, com a publicação de vários erros em órgãos de comunicação social ou em textos publicitários. A verdade, no entanto, é que, com o AO 90, o problema aumentou. Poderemos, eventualmente, debater as causas, mas não é possível contrariar os factos, contra os quais, como se sabe, não há argumentos.
Apesar de não ser objectivo deste texto abordar directamente a questão ortográfica, basta consultar anúncios, oráculos televisivos, cartazes ou páginas de Internet para confirmar o desastre. Assim, em Portugal, é possível, por exemplo, encontrar “fato” e “contato” por “facto” e "contacto”, respectivamente, sendo que ambos os erros são frequentes no próprio Diário da República ou nos jornais, e o segundo chega a ocorrer em páginas de escolas e de editoras. Recentemente, na página de Internet de um estabelecimento de ensino, um autor português aparecia como “ficionista” e num mesmo parágrafo de um manual escolar surgem, com poucas linhas de diferença, as formas “elítico” e “elíptico”. A lista de palavras em que ocorre a supressão de consoantes articuladas — e que, portanto, devem ser grafadas — continua a crescer, bastando, para o confirmar, que o leitor se dedique a pesquisar no Google a propagação de disparates como “fição” ou “inteletual”.
A instabilidade originada pelo acordo ortográfico, graças ao chamado “critério fonético” e à multiplicação de duplas grafias, contribui, portanto, para o aumento de erros, devido a fenómenos linguísticos como a analogia e a hipercorrecção. Em suma, a sociedade portuguesa, mesmo no que se refere a pessoas com formação superior, não consegue aplicar o AO 90.
É importante, a propósito, termos a noção de que a aprendizagem da ortografia não se faz apenas na escola e não se funda exclusivamente na razão ou na memorização de regras. Trata-se de um processo que implica também a memória visual. Diante da incerteza ortográfica que grassa nos espaços públicos, os jovens, ainda naturalmente imaturos, passe a redundância, interiorizam também aquilo que vêem/lêem.
É fácil deduzir, então, que obrigá-los a usar/reproduzir um acordo ortográfico que outras pessoas e muitas instituições não dominam ou não adoptam corresponde, na realidade, a aumentar a hipótese de que sejam prejudicados no exame de Português de 12.º. Relembre-se: os erros ortográficos podem valer um prejuízo de 4 (quatro) valores.
O respeito pelo percurso destes alunos impõe, no mínimo, que se continue a aceitar as duas ortografias, tal como acontecia até ao ano passado. Espera-se que, no Ministério da Educação, haja uma reflexão sobre esta matéria e se recue na decisão de impor uma grafia que não está nem pode estar consolidada.
Acrescento, ainda, uma nota final: tendo em conta que estará a terminar o período de transição para a nova ortografia e a quantidade de notícias sobre os problemas de aplicação, é fundamental que a sociedade civil debata, com abertura e seriedade, a questão ortográfica. Se se concluir que o AO 90 é inútil e pernicioso, deverá ser revogado, porque é um problema social cujos reflexos se farão sentir na aprendizagem das futuras gerações, muito para lá dos exames.
Professor de Português