Páscoa à portuguesa numa ilha indonésia
Na imensa muçulmana Indonésia, apenas uma ilha tem uma maioria de católicos. Nas Flores, garantem os locais, a Páscoa é celebrada como os portugueses ensinaram há quatro séculos. A língua lusa já não é falada, mas ainda se reza em português. E o Ronaldo é o Ronaldo.
Os barcos avançam devagar. São dezenas deles, de simples pirogas de madeira a enormes embarcações de pesca. Estão abarrotar de gente. Milhares de pessoas que rezam em conjunto. Nas margens da cidade costeira de Larantuca, especialmente junto ao cais, esperam outros milhares. Uns em silêncio, outros acompanhando a oração com enorme devoção.
É o início das festividades da sexta-feira santa da Páscoa numa ilha de um país em que 89% dos cerca de 250 milhões de habitantes são muçulmanos. A ilha das Flores é excepção: entre os cerca de um milhão de habitantes, 85% são católicos.
A herança foi deixada pelos missionários dominicanos portugueses que, em finais do século XVI, quando da queda da possessão portuguesa de Macaçar, chegaram em grande número às Flores. As tradições por eles avançadas mantêm-se até aos dias de hoje. A Semana Santa, assim mesmo em português, é uma delas.
Os habitantes, embora já não falem a língua de Camões, continuam a rezar na língua lusa, agora num mistura com o indonésio que já predomina nas orações. Porém, todas as celebrações continuam a reger-se pelas práticas deixadas pelos dominicanos. E os locais juram que continuam praticamente iguais.
O caixão que nunca foi aberto
É o caso da impressionante procissão dos barcos desta sexta-feira, dedicada ao “Santo Meninu”, em Larantuca, o centro de todas as festividades. O enorme cortejo é encabeçado por um barco tradicional remado por dois homens em que é transportado um pequeno caixão.
Os locais acreditam conter uma relíquia da imagem do Menino Jesus e que terá dado à costa do Mar das Flores no século XVII.
Um caixão que, asseguram, nunca foi aberto. É a fé que os faz acreditar naquilo que séculos de passagem de palavra dizem ser assim.
As emoções e orações sobem de tom assim que o pequeno caixão chega a terra. Os locais e os muitos milhares de visitantes cristãos (na Indonésia estima-se que sejam cerca de oito milhões) que vêm de várias ilhas rezam a uma só voz. Acendem-se centenas de velas que seguem o cortejo até à “Kapela Santo Meninu” não muito longe do porto. Aí, milhares de pessoas que durante semana veneraram o seu santo vão continuar a rezar. Horas sem fim, com uma enorme devoção e indiferentes aos mais de 30 graus e um nível elevado de humidade que desespera os que não estão habituados a tão pesado clima.
Uma semana de enorme fé
As festividades da Semana Santa começaram no Domingo de Ramos (“Dominggu Ramu”), há quase uma semana. Na quarta-feira seguinte foi dia de retiro. É proibido executar qualquer tipo de trabalho, não se podem realizar festas ou mesmo viagens mais longas. É igualmente um dia para a paz, para que não haja qualquer tipo de conflitos. “Para alegria e não para a tristeza”, dizem.
A par da oração, o dia é igualmente dedicado à limpeza da cidade, especialmente por onde vai passar a procissão desta sexta-feira à noite, outro dos momentos altos desta Semana Santa. Ao logo de quilómetros, na beira das estradas, estão já construídas as estruturas de bambu onde serão colocadas milhares de velas que vão iluminar o cortejo, muitas delas feitas ainda de favos de mel silvestre, como nos séculos passados.
Na quinta-feira começaram alguns dos momentos de maior devoção. Foi o dia de cumprir “promessa” como ainda hoje se diz na ilha. São horas impressionantes de fé. Depois da missa das 20h na Catedral “Reinha Rosari”, no bairro “Postoh” – fundado pelos portugueses em 1613 –, os cristãos marcham rumo à Capela da Senhora Mãe (“Gereja”, do original português igreja, “Tuan Ma”, consagrada a nossa senhora “Mater Dolorosa”) e à Capela do Menino Jesus (“Kapela Santo Meninu”).
Milhares de peregrinos juntam-se em filas de espera silenciosas para entrar nas igrejas. Ouvem-se orações permanentes rezadas em indonésio, mas mescladas com dezenas de palavras portuguesas. Antes de entrarem nas igrejas, os crentes descalçam-se. Assim que vencem as portas dos templos ajoelham-se e, muito lentamente, dirigem-se aos altares para uma pequena prece.
Filas toda a noite
Na Capela da Senhora Mãe veneram a imagem imponente de uma santa de manto negro que os locais acreditam ter cerca de 500 anos e ser de origem portuguesa. Na “Kapela Santo Meninu” adoram o caixão que nesta manhã encabeçou a procissão marítima.
Nos templos, dezenas de mulheres queimam centenas de velas e incenso sem parar ao longo de toda a noite e madrugada. No ar, um manto de fumo intenso cobre todo o espaço de igreja. As orações, cantadas também por dezenas de mulheres igualmente vestidas de negro e que se vão revezando nas preces sentadas em bancos rasteiros, nunca param.
As filas para entrar nos templos duram toda a noite. São coordenadas pelos membros dos chamados comités organizadores que, com notório profissionalismo, dirigem os milhares de peregrinos. São eles o garante de que os movimentos de entrada e saída nos espaços de fé são constantes. Sempre num movimento lento, em silêncio, ou apenas acompanhados de preces sussurradas.
Há gente de todas as idades nas filas. Os mais velhos ostentam as suas melhores roupas. As senhoras de cabelos arranjados e trajes finos; eles de fatos de gala ou camisas coloridas de tecido batik, dos ministérios indonésios onde trabalham.
Já os jovens trazem camisolas do Barcelona ou do Real Madrid, de selecções de vários países, incluindo a portuguesa. Nas costas das camisas lusas surge invariavelmente o nome de Ronaldo. O nome do goleador português é gritado sempre que percebem que o seu interlocutor é português.
Elas usam calças e blusas apertadas, num contraste gritantes com os trajes austeros das muitas noviças com quem se cruzam nas filas.
Há gente que segue de lágrimas nos olhos, mas, na maioria, é notória a satisfação e o orgulho de participar nesta manifestação de fé que, garantem, é “única no mundo” e realizada “como os portugueses faziam há 400 anos”.
Os visitantes estrangeiros são recebidos com sorrisos e com acenos de cabeça, como que agradecendo a sua presença. “Podem entrar à vontade e tirar fotografias. Estão a divulgar a nossa cultura e a nossa fé”, diz ao PÚBLICO um membro de um dos comités organizadores num inglês atrapalhado.
Em 1979 um terramoto de forte intensidade atingiu a cidade de Larantuka. Morreram mais de 150 pessoas e centenas de casas foram destruídas, algumas delas junto a estes dois templos. As igrejas ficaram intactas. A fé, já inquebrantável, ganhava ainda mais razão de ser para a gente das Flores.
O PÚBLICO viajou a convite do Governo da República da Indonésia