Pangloss em Lisboa 2014
Para que é que serve este tempo até Maio? Para nos dizer que até lá temos que aceitar tudo.
Mas a coisa está tão mal, que mesmo com o aviso do meu Grilo Falante para deixar o presente e falar de passarinhos e nuvenzinhas e de como é belo o nosso Portugal, eu volto ao mesmo. O país está a “dar a volta”, e eu “perturbado” “zangado”, “ressabiado”, “ignorado”, “velho”, ou “infantil” conforme a idade do autor da classificação, não vejo os excelsos “sinais da retoma” e o êxito à vista do “fim do resgate”.
E, por isso mesmo, Cândido e o seu jardim e Pangloss e a sua métaphysico-théologo-cosmolonigologie acabam a desembocar nestes miseráveis dias de hoje, onde as pessoas de bem não podem deixar de ficar zangadas com o exercício impante de hipocrisia que por aí passa nos discursos oficiais, nos comentários oficiais, no mundo político-mediático cheio de “responsabilidade” e “inevitabilidade” e vazio. Nuns casos, só vazio, noutros, vazio interessado e interesseiro. . É, Pangloss estaria bem nos dias de hoje, contando-nos a “narrativa” “positiva”, “optimista”, “aberta para o futuro”, “cheia de esperança nas virtudes excepcionais do povo português”, da actual situação nacional.
Ouvindo Pangloss, ouço-os a eles: de como vivemos no melhor dos mundos possíveis, com os “sinais positivos da economia” em cada esquina, com o fim do resgate a prazo, e a reconquista “plena” da “nossa soberania”, com o estrangeiro, até há pouco tempo perverso e desconfiado com os PIGS, agora cheio de admiração pelas virtudes do “ajustamento” português, com o “admirável esforço dos portugueses” e a capacidade excepcional das suas empresas “para dar a volta”. Ou seja, estamos mesmo no “fim do caminho”, a “dar a volta”. Mas a “dar a volta” a quê? “Dar a volta para onde? “Dar a volta” para quem?
É por isso que não vejo muita diferença entre o que diz Portas, Passos Coelho, e Cavaco Silva e é repetido pela voz do poder. Acresce que o PS de Seguro não conta como oposição. Mesmo a esquerda, ao comportar-se reactivamente como um reverso do espelho do poder, não faz outra coisa senão reforçar o discurso dominante, aceitando falar a partir dele, a partir do seu quadro interpretativo, a partir da sua forma mental. O enorme deserto do pensamento dos nossos dias vive dessa dualidade em que os temas, os modos e os tempos são definidos pelo poder e “recusados” pela oposição, dentro da mesma linguagem e aceitando muitas vezes os mesmos limites.
O discurso do poder hoje assenta num rito de passagem. Estamos em 2014, o nosso ano da “libertação do resgate”, o nosso 1640, o ano em que a troika se vai embora. Este é o tempo, que culmina com um rito de passagem, porque o momento lustral de recuperação da “soberania” tem data. Por isso, acentua-se o momento da “passagem”, para festejar um resultado e anunciar uma nova aurora. É tudo ficção, porque não há nenhuma mudança substancial a ocorrer em Maio de 2014, vamos continuar presos àquilo a que já estamos presos, seja pela troika, seja pelo direito de veto de Bruxelas aos Orçamentos, seja pelo Pacto Orçamental, mas é uma ficção útil, instrumental. Festejemos.
Para que é que serve este tempo até Maio? Para nos dizer que até lá temos que aceitar tudo, em particular esse Orçamento e as suas sucessivas revisões, cujo conteúdo miraculosamente não entra no discurso oficial, a não ser como o “instrumento necessário” para o fim do resgate, ou seja, uma coisa neutra e menor. Discute-se e fala-se muito de uma coisa etérea, os “sinais da retoma”, e quase nada sobre uma coisa dura e sólida, o Orçamento que aumenta e muito a austeridade para 2014. Quando vejo alguém centrar o seu discurso nos “sinais da retoma” já sei ao que vem, e já sei aquilo de que não vai falar.
A natureza do Orçamento e o que ele nos diz sobre o que se passou nestes últimos dois anos e o que se vai passar neste ano de 2014 e no futuro são deixados em silêncio. E silêncio porque não encaixa no tom congratulatório que tão útil vai ser para as eleições europeias e as legislativas. Aliás, o silêncio sobre as motivações eleitorais que já estão presentes na política do Governo é uma das grandes debilidades da análise presa ao discurso do poder. Passos e Portas e, de modo diferente, Cavaco pensam e muito nas eleições de 2014 e 2015, primeiro para as desvalorizar e assegurar que vão ser inócuas quanto ao “ajustamento”, ou seja, não servem para mudar políticas, depois para favorecer os partidos mais fiáveis para esse objectivo, o PSD e o CDS, e o PS de arreata. O discurso sobre o “compromisso” tem igualmente o objectivo de levar o PS a coonestar a interpretação governamental e presidencial do “ajustamento” e torná-lo inócuo como factor de mudança em eleições.
Depois de Maio, o discurso vai mudar. Vai-nos ser explicado, a todo o momento, “que a austeridade” não pode acabar”. Findos os festejos, ver-se-á se há ou não plano cautelar. A inexistência de uma discussão séria sobre um possível plano cautelar, cujo conteúdo se ignora, é um bom exemplo de como não há verdadeiro debate democrático no nosso espaço público. Se o plano cautelar for para um ano, como disse Passos Coelho, ele terá a natureza de uma continuidade da presença da troika por outra forma, e atirará para quem governar em 2015 decisões que este Governo pretende cuidadosamente evitar em ano eleitoral. Se for a mais longo prazo, disfarçado ou às claras, há que exigir que vá a votos, coisa de que ninguém fala ou quer e percebe-se porquê.
Depois, tudo o que não encaixa neste tempo e nesta “narrativa” ou é meramente enunciado por obrigação, ou não tem papel na interpretação. Aqui Portas, Coelho e Cavaco falam do mesmo modo. Diz-se umas coisas sobre o sofrimento social, mas apresenta-se como um dano colateral inevitável. Acima de tudo, não pode servir como elemento de uma política, apenas como constatação de um efeito. O verdadeiro sujeito do discurso são sempre “as empresas”.
Os “mais pobres” são protegidos pela assistência do Estado e pela caridade, como argumento para atacar os rendimentos dos que não são tão pobres, aqueles que “ainda têm alguma coisa”, que, esses sim, são os alvos da política governamental, no assalto àquilo a que se chamava “classe média”. Claro que não se diz aos mais pobres dos pobres, cujo papel retórico é importante na legitimação da política governamental, que assim fica garantido que nunca mais sairão dessa pobreza. E fica também garantido que muito outros se lhes juntarão.
O reverso deste discurso é a propaganda, em que muitos órgãos de comunicação participam, por folclore da “novidade” e ignorância, dos “sucessos empresariais” dos que “dão a volta”, e fazem compotas em casa ou móveis com lixo, ou vão fazer agricultura biológica. Para além de nunca se voltar mais tarde, nem que seja um ano depois, para ver o “sucesso” dessas microempresas, não se diz que pura e simplesmente, mesmo que algumas tenham sucesso, são uma gota de água na desgraça geral e acima de tudo que não são o caminho alternativo às fábricas que fecham ou aos milhares de funcionários públicos que vão para a rua, nem ao desemprego eufemisticamente designado como “de longa duração”.
Em “colóquios” e “congressos”, em mensagens televisivas, e nos repetidores habituais, este é o discurso do poder para 2014. Nada de importante é enunciado, muito menos discutido, ou vai a votos, tudo está pactuado dentro do círculo do poder estabelecido. E nós somos apenas paisagem. Na verdade, diria Pangloss, “está demonstrado que as coisas não podiam ser de outra maneira”. “Tudo foi feito para um objectivo”: “os narizes foram feitos para segurar os óculos, e por isso temos óculos”, “as pedras foram formadas para serem talhadas e para fazer castelos, e por isso Monsenhor tem um belo castelo”, e os “porcos foram feitos para serem comidos”, por consequência, “aqueles que dizem que tudo está bem dizem uma asneira, é preciso dizer que tudo está ainda melhor do que eles imaginam”.
Vou ver se consigo para a semana falar de outra coisa. “Cela est bien dit, mais il faut cultiver notre jardin.” Pangloss não me ajuda.