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"Os hospitais desesperam para se verem livres dos doentes que lhes dão prejuízo"

O Ministério da Saúde tem de alterar o modelo de financiamento que está a obrigar os hospitais públicos a fazerem “desnatação de doentes”, defende o bastonário da Ordem dos Médicos, o único candidato ao cargo nas eleições desta quinta-feira.

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Enric Vives-Rubio

Resultado? José Manuel Silva, que dá aulas na Faculdade de Medicina de Coimbra, onde se formou, conclui que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está a “perder qualidade”, que há uma “clara desmotivação dos profissionais” e que os serviços estão a funcionar com “constrangimentos dramáticos”. Dá o exemplo do serviço de urgência do Hospital de Aveiro, onde recentemente viu “39 doentes em macas, alguns há três dias, à espera de cama”.

Quando venceu as últimas eleições, enunciou, no seu discurso de tomada de posse, uma série de compromissos, um dos quais era o da revisão dos estatutos da Ordem, que permitirá acelerar a resposta às queixas dos cidadãos.
Era a questão primeira. O processo de revisão dos estatutos está concluído, elaboramos uma proposta que foi apresentada em Fevereiro ao Ministério da Saúde. Isto é essencial. Temos só cinco elementos nos conselhos disciplinares regionais. Nos novos estatutos está previsto o aumento do número de elementos e são eleitos suplentes,  portanto as decisões da Ordem vão ser muito mais ágeis. Nós temos a consciência de que os atrasos dão muito má imagem [da instituição].

Há médicos condenados em tribunal, por crimes graves, que continuam a exercer. A OM não pode fazer nada nestas situações?
O problema é que também temos o inverso. Há decisões da Ordem impugnadas em tribunal. Dou-lhe o exemplo de um médico que foi condenado a suspensão, por pedofilia [abuso sexual de menores],  mas recorreu para o tribunal administrativo e esse processo está a marinar há três anos.

As pessoas fazem cada vez mais queixas à Ordem?
Sim, mas a esmagadora maioria são queixas sem consistência, sem prova possível. E temos tomado decisões. No último Conselho Nacional de Disciplina decidimos mais uma expulsão. Estamos empenhados em separar o trigo do joio e absolutamente determinados em demonstrar que as nossas decisões de auto-regulação disciplinar não são corporativas. Só que podemos decidir rapidamente sobre questões técnicas mas não sobre decisões que impliquem uma investigação judicial, como por exemplo as fraudes no circuito do medicamento e com receitas.  Vamos ter que esperar que as sentenças transitem em julgado. Em todos estes casos, os médicos  também correm o risco de expulsão. Não queremos pessoas fraudulentas dentro da classe. Agora, se o tribunal ilibar as pessoas não podemos aplicar-lhe uma pena, elas recorrem.

Mas uma coisa é o crime, outra coisa é a deontologia.
Sim, aliás foi exactamente por isso que um psiquiatra do Porto [acusado de violação de uma doente]  foi condenado a expulsão.

No seu discurso de tomada de posse, também dizia que queria criar a figura de provedor do doente. O que é que aconteceu?
Acabamos por não criar essa figura porque achamos que quem se devia assumir como provedor do doente era a própria OM e o bastonário. Temos tido uma associação muito próxima com as associações de doentes.

Quais são as suas prioridades para os próximos três anos?
Defini três grandes linhas de actuação, uma das quais é lançar o debate sobre a proletarização dos médicos e do SNS. Estamos a ter cada vez mais uma medicina a duas velocidades, uma para os ricos e outra para os pobres. Outra passa por alterar a contratualização/financiamento dos cuidados de saúde, que está a distorcer o SNS, a obrigar os hospitais a fazer desnatação de doentes. Também pretendo avaliar as condições de exercício da medicina e a qualidade em todo o continente e ilhas.

O problema central é o do financiamento?
O financiamento hospitalar é absolutamente deficiente. Temos uma situação caricata. Temos uma directiva transfronteiriça que permite a um doente do Algarve ir tratar-se a Berlim, mas há legislação interna que proíbe a um doente do Algarve ir tratar-se a Lisboa. Neste momento as fronteiras internas são mais inultrapassáveis do que as europeias. Está tudo errado porque os hospitais desesperam para se verem livres dos doentes que lhes dão prejuízo. Não se pode financiar doentes cirúrgicos todos pelos mesmo valor [seja qual for o custo que implicam de facto]. Não mexer nesta questão é uma das maiores manchas deste ministério. São situações perversas e paradoxais relativamente às quais não se tem tomado qualquer medida efectiva.

Por que razão é que acha que o ministro Paulo Macedo não altera esta situação?
Porque tem prevalecido a preocupação de cortar e não de reformar. Já basta. Já temos uma despesa per capita muito abaixo da média da OCDE, uma comparticipação directa dos cidadãos para as despesas em saúde muito acima da média da OCDE e os nossos indicadores de saúde já estão a sofrer, por exemplo com o aumento da taxa de mortalidade infantil.

Tem elogiado o actual ministro da Saúde mas, ao mesmo tempo, diz  que ele sofre de uma obsessão financeira.
Tenho uma boa impressão do ministro da Saúde e das suas qualidades técnicas e humanas. Considero até que é o ministro mais qualificado do Governo. Outra questão são as medidas que toma. Não posso deixar de reconhecer que há duas medidas muito positivas – a redução do preço dos medicamentos e o combate à fraude e corrupção na saúde – mas, depois, há outras questões que obviamente criticamos, como o facto de a reforma dos cuidados de saúde primários estar em banho-maria, a contratualização na saúde não existir e não haver uma avaliação de  base para se definir a reforma hospitalar em Portugal.

Está a falar da concentração e do encerramento de serviços hospitalares?
Isso não é reforma. Concentrar serviços  é o que qualquer merceeiro faz. É preciso, primeiro, saber o que é que o país necessita e aonde. Só depois disso é que se pode fazer a reforma hospitalar.

Mas o ministro já pediu estudos sobre a reforma da rede hospitalar a uma série de entidades e de especialistas.
Porque é que será que ainda não fez a reforma? Porque se calhar os estudos estão todos mal feitos.

Como avalia o estado do Serviço Nacional de Saúde, depois dos sucessivos cortes?
Os cortes continuam, até para além daquilo que é recomendado pela troika. Há centenas de jovens especialistas a serem contratados, mas há muitas dificuldades, por exemplo nas urgências que são o espelho do SNS. No Hospital de Aveiro, que visitei recentemente, vi 39 doentes em macas, alguns há três dias, à espera de cama. O Serviço de Medicina Interna chega a ter uma taxa de ocupação superior a 200% (quando deveria ser de 85%), o que é um sinal de péssima qualidade. Agora, a culpa é do conselho de administração? Não. Obrigaram-no a encerrar camas em Estarreja e em Águeda…

Isso significa que o SNS piorou?
O SNS está a funcionar com um claro comprometimento da qualidade. Estamos a perder qualidade no SNS, que está a ser decapitado do topo da carreira. Centenas de médicos reformaram-se antecipadamente. Amputar a hierarquia é uma das piores vilanias que se podem fazer ao SNS. Abriram 130 vagas para assistentes graduados seniores, quando seriam necessárias vinte vezes mais. Há uma clara desmotivação dos profissionais de saúde e constrangimentos dramáticos no funcionamento dos serviços. Depois, o que acontece é como no futebol: mesmo que os jogadores sejam muito bons, a equipa perde.

Tinha dito no seu discurso de tomada de posse que o bastonário da OM não podia correr o risco de se transformar numa espécie de comentador desportivo da saúde.
Isso foi antes de rebentar a crise actual. A crise caiu-nos em cima, o que me obrigou a uma intervenção muito distinta.
 
Os médicos perderam um pouco do prestígio que tinham?
Acho que não, mantêm o prestígio, mas neste momento há muito mais médicos, há mais acessibilidade, o que é bom.

Mas a Ordem não se tem cansado de repetir que estão a ser formados médicos a mais em Portugal.
Dizemos isso com base em dados técnicos. Há um estudo que estima que podemos ter nove mil médicos a mais, até 2025.

Esses médicos podem emigrar, como acontece noutras profissões.
Já estão a fazê-lo. Fazem-no por terem no estrangeiro melhores perspectivas de desenvolvimento e realização profissional, o que está comprometido em Portugal porque os cortes na saúde estão a impedir o acesso à tecnologia e à medicação inovadora. É preciso que entre o Ministério da Saúde e as câmaras municipais se criem medidas de discriminação positiva para fixar médicos no interior do país, de forma a não termos este paradoxo de formar profissionais a mais e haver zonas onde há falta de médicos porque eles emigram.

O que seria, para si, uma boa votação nestas eleições?
O que me deixaria satisfeito seria ter mais votos do que na eleição de há três anos, em valor absoluto [teve cerca de  3700 votos ].

Mas isso é menos do que 10% do universo dos médicos portugueses.
Sim, haverá cerca de 45 mil inscritos na Ordem.

No primeiro mandato, enfrentou oposição interna, quando o parecer sobre o racionamento de medicamentos, depois de ter sido criticado por si, foi considerado equilibrado pelo Conselho de Ética da OM, que até se demitiu.
Não quero voltar a essa polémica. São águas passadas. Foi nomeado um novo conselho de ética e no último número da revista da OM está publicado um novo parecer.

Recentemente foi acusados pelos deputados da Comissão Parlamentar de Saúde de ter usado expressões grosseiras num editorial a propósito da lei sobre as terapêuticas não convencionais. Vai pedir-lhes desculpa, como eles reclamam?
Não, eles é que deviam pedir desculpa aos portugueses pela forma como a medicina tradicional chinesa foi aprovada.
 
 

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