Operação Marquês: Liberdade ou morte, eis a questão
A defesa de ruptura surge na sua plenitude em processos excepcionais
Certo é, desde já, que esta afirmação de uma recusa absoluta de conivência com a realidade exterior, para além da sua qualidade literária é judicialmente significativa. Como já anteriormente foi referido nesta coluna, quem teorizou esta estratégia judiciária foi o famoso advogado francês Jacques Vergès que, na sua obra De la Stratégie Judiciaire publicada em 1968, distinguia entre as estratégias de defesa criminal por sedução e por ruptura. Nestas, o réu questiona a legitimidade dos julgadores ou da parte acusadora e dirige-se a outras instâncias, nomeadamente a opinião pública. Um bom exemplo é o da defesa de Fidel Castro, no seu julgamento em 1953 pelo assalto ao quartel de Moncada, em que alegou durante duas horas terminando com a já clássica expressão: “A História me absolverá”. Nas outras defesas, procura-se de alguma forma seduzir os julgadores, trazendo-os para a “narrativa” do réu, não os afrontando directamente e, assim, conseguindo a compreensão e a benevolência do tribunal.
O teor desta declaração assim como o modo da sua divulgação mostram de forma inequívoca aquilo que é evidente desde o princípio deste processo: o ex-primeiro-ministro considera como seu interlocutor a opinião pública, passando por cima do tribunal (ministério público e juiz de instrução criminal) que, para si, desde o momento da prisão, é uma instância que produz acusações “falsas”, “absurdas”, “injustas”, “infundamentadas” e que determinou uma prisão “injustificada” que constitui uma “humilhação gratuita”.
Este é, inevitavelmente, um processo jurídico e político que decorre simultaneamente nos tribunais e na praça pública. As razões para assim ser são muitas: desde o facto de o arguido ter sido primeiro-ministro, líder do Partido Socialista e uma pessoa com uma personalidade pública vincada e polémica, passando pelos crimes que estão em causa e pela forma como alguns órgãos de comunicação social conseguiram ir tendo acesso a informação que estava ao abrigo do segredo de justiça. Isto, sem esquecer as sucessivas mensagens públicas emitidas pelo próprio arguido a partir da sua cela em Évora.
Sublinhe-se que o ex-primeiro ministro podia aceitar – até sob protesto - a vigilância electrónica, o que ninguém de boa-fé poderia ver como uma aceitação da legitimidade da prisão, tendo em conta a provável alternativa – prisão preventiva pura e simples. Poderia também dizer somente que não aceitava a medida de coacção e limitar-se a comunicá-lo ao juiz de instrução, como o obrigava o segredo de justiça. Mas não o fez porque não o pode nem o deve fazer em termos da sua estratégia de ruptura.
E, naturalmente, José Sócrates não se limitou a dizer “não”. Aproveitou a ocasião para fazer um balanço público do que, na sua perspectiva, se passou no processo durante estes seis meses de prisão. E fê-lo de uma forma juridicamente discutível mas literariamente demolidora: “Seis meses sem acusação. Seis meses sem acesso aos autos. Seis meses de um furiosa campanha mediática (…) Seis meses de imputações falsas, absurdas e, pior – infundamentadas (…) Seis meses, enfim, de arbítrio e de abuso”. E caracteriza desta forma o “falhanço” da instância judicial: “depois de seis meses de prisão, nem factos, nem provas, nem acusação”.
José Sócrates, ao fazer este balanço, está a antecipar-se à acusação e a ocupar na arena pública o papel do tribunal: está a julgar publicamente a justiça. E a sua sentença é radical: todo o processo se baseia num erro, que se procurava agora disfarçar com esta medida de “meia-libertação” com que ele, “vítima de uma enorme e cruel injustiça” não pode pactuar.
A terminar, José Sócrates explica que não podia tomar outra atitude pelo respeito que deve a si próprio e aos cargos públicos que exerceu. Atribui assim, perante a opinião pública, um elevado significado ético e político ao seu gesto que o leva a sacrificar-se bem como à sua própria família e aos amigos. A estratégia é, pois, a de “tudo ou nada”. Não lhe serve a melhoria da sua situação processual. Só lhe interessa a liberdade.
Falta, naturalmente, saber o teor da acusação que virá a ser deduzida pelo Ministério Público e a prova que a sustentará mas José Sócrates sabe que o processo não pode terminar com uma condenação de pouca monta: ou é absolvido ou o processo é arquivado por falta de provas. Qualquer condenação será, fatalmente, excessivamente pesada para si.
De certa forma, independentemente da sua culpa ou inocência, José Sócrates está condenado a uma guerra sem tréguas.