O verdadeiro perigo do manifesto dos 70
Pode ser que o pedido de renegociação “honrado” da dívida, como propõe Miguel Cadilhe, tenha surgido numa má altura para o interesse nacional. Mas a oportunidade não justifica a desqualificação da sua substância nem dos seus autores. Quando faltam dois meses para o fim de uma etapa da crise, faz tanto sentido admitir que a coisa está a correr bem e que não se deve mudar de rumo como inquirir se o país do pós-troika aguenta a infortúnio de mais uma geração. O que é um absurdo é aceitar que nada mais resta nas nossas vidas senão a condenação a vegetar no fatalismo, a falar baixinho com medo que a Europa ou os mercados nos ouçam. Um país que desiste de procurar respostas está a um passo de desistir de tudo o resto.
O manifesto gerou ruído e raiva porque recusa aceitar de ânimo leve essa visão para o futuro que se limita ao ranger de dentes e à capitulação. Por isso se tornou tão incómodo. E tão eficaz. Pela primeira vez, o país percebeu que a discussão de um adiamento dos prazos de pagamento da dívida ou uma renegociação dos juros no quadro institucional europeu não é uma prerrogativa da esquerda radical. Se houve quem, como António Costa, no Económico, o considerou “apenas um documento político mínimo garantido que serviu para uns credibilizarem as propostas de outros, para pôr a estratégia de oposição ao Governo à frente do interesse do País, para fazer oposição pessoal a Passos Coelho” é porque o leu pela rama ou porque alimenta uma rejeição liminar a tudo o que questione o situacionismo da austeridade.
Mais do que “um manifesto de Esquerda” ou um ataque aos “credores privados”, como se leu no Económico, mais do que um sinal de “que o que nos preocupa é menos resolver os nossos problemas e mais pedir mais tempo e menos juros” ou de “alimentar a ilusão da culpa alemã, do estereótipo de uma Alemanha que já não existe, fomentando a divisão europeia”, como sugere Helena Garrido, no Negócios, o manifesto representa uma atitude de quem pensa que a história não vai acabar na narrativa da austeridade, da dívida e dos juros. É a prova de que estamos condenados a ser livres, a ter de escolher males menores sem esperar que um dia a Europa descubra nos escombros do país a prova de que, de facto, na situação actual a dívida externa é impossível de gerir sem um novo ditador das Finanças.
O grande mérito das 74 personalidades que o assinaram está em assumir a vulnerabilidade de quem está em aflição, de quem cometeu o erro de se endividar até ao delírio, sem no entanto aceitar que o passado recente implica uma condenação para o futuro. Como se leu no editorial do PÚBLICO desta quarta-feira, “analisando o tal manifesto à lupa, chega-se à conclusão de que a palavra ‘reestruturação’ pode não ser tão medonha ou pejorativa como pode parecer”. A profecia que o ministro Carlos Moedas deixou num blog em Maio de 2010, ao dizer que “a austeridade é necessária e urgente, mas se mantivermos os níveis actuais de dívida, dificilmente conseguiremos crescer a níveis aceitáveis … e se não crescermos morremos”, tem no seu texto uma resposta assertiva.
Acreditar que no manifesto está a solução de todos os problemas é tão inocente como acreditar que é na austeridade que congela as expectativas de uma geração que está a receita para o futuro. A diferença é que o manifesto se ergueu como uma fenda num pensamento até agora único. A irritação de Passos Coelho ou de Paulo Rangel justifica-se porque esta semana se manifestou uma ampla plataforma de consenso que vai de patrões a sindicalistas, da área do CDS ao bloco, de ex-ministros a cientistas reconhecidos. Um aborrecimento para a campanha das europeias. Quer a tese do Governo, quer a do manifesto tem os seus prós e contras, pelo que os portugueses têm matéria para reflectir e escolher. Para se lá chegar, porém, deve-se recusar o dogmatismo da via única que chega a recusar o direito de cidade a quem pensa de forma diferente.
2 — Por estes dias deu-se uma revelação na cabeça de José Luís Arnault. O corte nas transferências financeiras do Governo para a Fundação Mário Soares “ajudou-o” a explicar “algumas coisas que não tinha conseguido explicar”, disse ele esta segunda no programa Conselho Superior da Antena 1. Ou seja, ajudou-o a perceber que a “deriva revolucionária” de Soares e a sua “agitação permanente” se explicam com o vil metal ou, no caso, pela sua ausência. Se o princípio de que no mundo tudo se compra e tudo se vende fosse universal, pode-se suspeitar que José Luís Arnault não é crítico do Governo nem da ordem estabelecida porque tem uma ligação a um banco, o Goldman Sachs, que costuma privilegiar as boas relações com o poder. Ou, invertendo a equação, pode suspeitar-se que ele foi contratado para o Goldman Sachs porque, ao contrário de Soares, não se empenha em derivas revolucionárias nem está no outro lado do muro do Governo. Mas não, o mundo nem sempre é assim.
“Explicar” as posições públicas de Mário Soares como uma reacção à suspensão de pagamentos à sua função é por isso uma atitude infeliz. Soares diz o que diz e faz o que faz, por vezes recorrendo a argumentações inaceitáveis e demagógicas, porque se limita a ser coerente com o que sempre foi. Só uma imensa mesquinhez pode levar alguém a pensar que a sua liberdade de pensamento se condiciona com o financiamento de uma fundação que, por acaso, tem uma evidente utilidade pública. Que a providência nos salve de José Luís Arnault no poder. Com esta concepção do mundo, era vê-lo a comprar consciências para viver em paz. Mesmo as de homens que, como Mário Soares, aceitaram voluntariamente todas as privações, incluindo a da Liberdade, para poderem dizer o que pensam sem o condicionamento que normalmente a banca internacional impõe aos seus altos-quadros.