O que cheirou a bafio no 25 de Abril

Há um único fio condutor de todas estas manifestações e é inequívoco: são protestos contra o Governo e o Presidente da República, são protestos contra a situação.

A lista incluiu associações académicas de Coimbra, Lisboa e Algarve, muitas das quais estiveram na vanguarda da defesa da praxe, o Corpo Nacional de Escutas, a Conexão Lusófona e as associações Synergia, Zunzum, Sport Club Operário de Cem Soldos, Suão e Moju. Não se sabe qual a sua representatividade, a começar pela capacidade de representarem a “juventude”, e os sites desses “movimentos” revelam bem a dependência dos apoios das organizações de juventude estatais, como o Instituto Português do Desporto e Juventude, cujo membro da tutela esteve presente, e autarquias ligadas ao PSD. Não me recordo de ver algum dos blogues governamentais mais assanhados contra tudo o que sejam ajudas de Estado protestarem. Que se saiba no almoço não houve qualquer reivindicação ou protesto. Estes “jovens” portam-se bem.

Passos Coelho, que deve ter do bafio um conceito muito especial, usou uma metáfora hortícola para falar da "liberdade e a democracia [que] têm de ser regadas com muito cuidado todos os dias". De novo, usou a dicotomia menos inocente que há nos nossos dias, a dos jovens e dos velhos, que esteve presente nas suas palavras: “O que peço é a esses que não têm com que comparar que não deixem de acreditar na capacidade de todos os dias fortalecer o espirito da liberdade e da democracia, sem a qual a nossa sociedade fica com menos futuro".

Fazer de conta que o Governo actua essencialmente para os jovens ou em nome dos jovens, presente no perverso conceito de “justiça geracional” – sacrifiquem-se duramente os avós e os pais, em nome do benefício hipotético dos filhos e dos netos – é um dos leitmotivs da propaganda governamental e o almoço “comemorativo” do 25 de Abril serviu para isso. Os velhos estão na rua a manifestar-se, os jovens em fila ordenada para os cumprimentos ao primeiro-ministro. O passado “bafiento” comemora o 25 de Abril defendendo egoisticamente as suas “regalias” e roubando aos mais jovens o futuro. O futuro zangado foi sentar-se à mesa do primeiro-ministro com um disciplinado guardanapo.

Comparadas com este solene e composto almoço de fato e gravata, até as comemorações do 25 de Abril na Assembleia foram um verdadeiro elixir de juventude e muito mais arejadas. Houve discursos melhores do que o costume, não houve fantochadas para épater os jornalistas como um célebre discurso de Aguiar Branco citando Lenine e Rosa Luxemburgo a partir da Wikipedia e cheio de erros, e, mesmo do lado governamental, discursos como o do representante do CDS, Filipe Lobo de Ávila, foi moderado e digno. A presidente da Assembleia fez um discurso teórico, mas certeiro sobre a democracia, mais reflexivo do que costuma ouvir-se naquela casa, e o Presidente começou bem e acabou mal, enredado nos seus próprios demónios. O PS conseguir ser a nulidade mais completa, com uma retórica sem convicção nem substância.

Depois há a rua. Umas dezenas de militantes da extrema-direita manifestaram-se junto da Assembleia, mas as televisões (que eu vi) fugiram de os mostrar em directo numa clara violação do direito à informação. Eu não gosto do que eles dizem e pensam, mas não compreendo por que razão não têm direito a serem tratados como notícia. Não me venham com o argumento de que eram poucos, porque o número escasso de pessoas que já vi em protestos locais da CGTP e mesmo manifestantes singulares nas galerias da Assembleia têm muitas vezes um longo tratamento noticioso e com destaque.

O resto da rua foi uma enorme manifestação que mobilizou centenas de milhares de pessoas em dois dias de protestos, em Lisboa, no Porto, um pouco por todo o país. Fizeram-no num dia que permitia um fim-de-semana mais prolongado e, na zona Sul do país, com um sol esplêndido para ir para a praia. No Norte do país, no Porto em particular, debaixo de chuva. As manifestações não foram vencidas pelo conforto e isso mostra militância.

Há um único fio condutor de todas estas manifestações e é inequívoco: são protestos contra o Governo e o Presidente da República, são protestos contra a situação. E embora houvesse alguma organização, são resultado de uma disposição genuína e espontânea, em que os partidos e sindicatos têm papel diferente do habitual. Não estão lá por serem do PCP, do BE, da CGTP, do PS, do PSD e da UGT que são contra o Governo, não estão lá por serem do “Que se lixe a troika”, ou da complicada e múltipla fauna de grupos e grupúsculos de protesto, de género, de single issue, da cultura, etc., etc. Estão lá por causa do 25 de Abril revisto e ampliado dos dias de hoje, estão lá porque a data já longínqua os ajuda a mobilizarem-se no presente. Dá-lhes músicas como a Grândola, poemas como os da Sophia e do Ary dos Santos, imagens como as dos “rapazes dos tanques” nas fotos de Alfredo Cunha, de Gageiro ou de Miranda Castela, histórias de proveito e exemplo, de resistência e coragem, figuras e ícones, ou seja, dá-lhes uma identidade que vem do passado para o presente.

E essa identidade ainda tem alguma capacidade de transmissão geracional. Eu disse alguma, não disse muita. Mas essa alguma é ela própria nos dias que correm tão excepcional que merece atenção. O 25 de Abril que se viveu no dia de ontem não foi o de 1974, mas o de 2014 feito em nome do de 1974. E muita gente apareceu, em manifestações menos soturnas do que as habituais, porque ainda há um resto de alegria dos primeiros dias após Abril de 1974 que ainda permanece. Recordar o 25 de Abril de 1974 é instrumental para as lutas do presente e daí o incómodo do “bafio”.

É relevante o número elevadíssimo de manifestantes? Claro que é, até pelo contraste com o almofadado almoço de S. Bento, que significa que o PSD e o CDS nascidos com o 25 de Abril estão hoje acossados em todos os lados menos nos salões. Perderam a rua, não porque o desejassem – tenho a certeza de que se pudessem fazer uma grande manifestação, ou mesmo uma pequena manifestação de apoio ao Governo, certamente que a fariam. Mas não podem. Hoje, os partidos do poder não conseguiam mobilizar para uma rua qualquer nem quinhentas pessoas, puxando por todos os cordelinhos e os fundos largos à sua disposição. Conseguem duas mil nuns almoços de campanha, arregimentados pela camisola e pelos pequenos poderes locais, em certas zonas do país. Mas se o apelo for por causas tão genéricas como o apoio ao Governo, como muitos franceses fizeram a De Gaulle contra o Maio de 1968, então ninguém lá vai. Este abandono da rua não é por a rua ser de “esquerda”, mas porque a actual “direita” no poder estar de mal com o seu país, muito de mal.

Se o “1640”, a ocorrer oportunamente uma semana antes das eleições europeias, fosse mais do que uma boutade ou um soundbite de Paulo Portas, e fosse para tomar a sério, a rua no 25 de Abril seria o equivalente a uma gigantesca e colectiva defenestração dos Miguel de Vasconcelos da actualidade. E isso é bem pouco “bafiento”, muito juvenil e fresco quanto sábio e experimentado. A Constituição dá os meios, a rua a vontade.

Sugerir correcção
Comentar