O papão do escrutínio público
A transparência dos actos de gestão da coisa pública não dói nada e só reforça a democracia.
O PÚBLICO começou por solicitar directamente os documentos à Câmara Municipal de Lisboa (CML), em 2011, que nem sequer respondeu. Seguidamente, o jornal interpôs um pedido junto da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que determinou que a CML os deveria entregar. Armado desse parecer, o PÚBLICO voltou a pedir os documentos à CML, e de novo não teve resposta. O jornal decidiu então recorrer ao Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, que lhe deu de novo razão. A CML, em resposta, recorreu para o Tribunal Central Administrativo, que decidiu contra a autarquia e confirmou a decisão da CADA. A câmara decidiu então recorrer para o Tribunal Constitucional, que rejeitou o recurso. Fim da história? Ainda não. A CML fez um recurso para a Conferência de Juízes do Tribunal Constitucional, que, de novo, e de forma definitiva, se recusou a apreciar o recurso, considerando que ele não tinha cabimento. A CML, três anos depois, e esgotadas as possibilidades de recurso, entregou finalmente, há dias, os documentos ao PÚBLICO.
O primeiro facto digno de nota nesta história é a perseverança do jornal, recorrendo à CADA e aos tribunais durante três anos, escrevendo recursos e gastando horas e meios consideráveis para conquistar o acesso aos documentos, em nome do interesse público. Numa época em que nos queixamos tanto e com tanta razão da superficialidade do jornalismo instantâneo e da falta de follow-up nas notícias, o facto merece relevo.
O segundo facto digno de nota é o esforço a que a CML se deu, com um absurdo dispêndio de dinheiros e recursos públicos (seus e dos tribunais que envolveu), para evitar entregar documentos relativos ao mau funcionamento dos seus serviços que o público tinha todo o direito a conhecer e a CML nenhum direito a esconder.
Diga-se que os documentos agora publicados não fazem grandes revelações - nem isso se esperava. As irregularidades a que estes documentos se referem já eram conhecidas nas suas linhas gerais através de uma recomendação da Comissão para Promoção das Boas Práticas da CML tornada pública em 2011. Foi aliás para melhor compreender o contexto desta recomendação que o PÚBLICO os solicitou.
Diga-se também que a recusa em tornar estes documentos públicos não parece dever-se a uma tentativa da CML para esconder ou ignorar as irregularidades detectadas, já que o próprio PÚBLICO considera que elas foram atempadamente corrigidas por António Costa na sequência da referida recomendação.
Qual foi então a razão para a tentativa de sonegação desta informação aos munícipes de Lisboa e aos cidadãos em geral?
A razão aparece plasmada no recurso feito para o Tribunal Central Administrativo: segundo António Costa, revelar estes documentos “abre caminho a que todas as decisões políticas [...] fiquem sujeitas ao escrutínio público [...], o que irá conduzir à diminuição/perda da autonomia que deve caracterizar o exercício do poder político”.
Há nesta argumentação um artifício legal: como a lei determina o livre acesso dos cidadãos aos “documentos administrativos” mas não aos “documentos políticos”, a CML tenta fazer valer o princípio de que, neste caso, se trata de “documentos políticos”, seja isso o que for.
Mas há aqui uma questão de fundo que não pode deixar de ser levantada. Ao defender que “as decisões políticas” não podem ser sujeitas “ao escrutínio público” porque isso conduz “à perda de autonomia do poder político”, António Costa adopta uma argumentação antidemocrática e moralmente inaceitável.
Em democracia, todas as decisões políticas têm de ser sujeitas ao escrutínio público e não há qualquer princípio de autonomia do poder político que exclua esse escrutínio.
A transparência que se exige da administração pública pretende garantir esse escrutínio não só sobre os “processos administrativos” mas também sobre as “decisões políticas”. E é por esse escrutínio ser o coração da democracia que se dá tal importância à transparência e que se define que esta deve ser a regra e o segredo a excepção. Há casos em que deve haver segredo, mas esse segredo deve ser justificado com base em necessidades provadas e não pode ser eterno – como infelizmente acontece hoje.
Como este caso prova, a transparência dos actos de gestão da coisa pública não dói nada e só reforça a democracia.
António Costa tem um currículo e qualidades políticas que o podem levar um dia a chefiar um governo. Seria bom se compreendesse que estes tiques autoritários não o servem, não servem a cidade, não servem os portugueses, não servem a política e não servem a democracia.