O caso BES: o teste de stress à justiça portuguesa
Os portugueses e as portuguesas estão habituados aos enredos intermináveis dos processos de criminalidade económica em que estão envolvidos poderosos.
Os portugueses e as portuguesas estão habituados aos enredos intermináveis dos processos de criminalidade económica em que estão envolvidos poderosos. Todos eles partilharam a ribalta mediática, com violações sistemáticas do segredo de justiça, quando se iniciaram, apontando para fortes indícios da prática de crimes graves (burla, branqueamento de capitais, falsificação de documentos, etc....) puníveis com vários anos de cadeia. Mas, hoje, se quisermos saber o que aconteceu aos casos Partex, Facturas Falsas, JAE, Universidade Moderna, Freeport, Operação Furacão... não nos lembramos porque se foram esfumando na nossa memória coletiva? A resposta é porque o seu percurso e desfecho (prescrição, absolvição ou fracas condenações por acusações mal preparadas – todos os indicadores mostram que as taxas de condenação nos casos de corrupção e de criminalidade económica são muito baixas) estão muito longe do estrondo com que se iniciaram. O caso BES segue-se aos casos BCP e BPN, cujo percurso nos faz suspeitar que irão seguir as pisadas de outros que envolveram poderosos. E, talvez, o BES já esteja no mesmo trilho. Mas, se o estiver, é preciso imediatamente tirá-lo de lá.
O desmoronamento do GES e do BES puseram a nu as redes de construção e de proteção do poder na sociedade portuguesa, só possível a partir de fortes teias de cumplicidade entre o poder político, o poder financeiro e certos setores da comunicação social. Não deixa de nos impressionar a segurança, dada pela certeza da impunidade, com que se negociava o branqueamento e a fuga de capitais, se fazia tráfico de influências, se falsificava a contabilidade e informações prestadas ao Banco de Portugal (BdP) e a outas entidades, se burlavam pessoas, empresas e instituições a coberto de fachadas socialmente respeitáveis, como era o BES, entre outras ações de banditismo. Graças a elas foi possível o florescimento de certos grupos económicos e financeiros que, esses sim, viviam muito acima das suas possibilidades. Quanto nos custou e irá custar esses atos de banditismo em cortes de salários, pensões, subsídios, na redução do estado social, no aumento de impostos? É urgente que se façam as contas do roubo que foi feito aos cidadãos portugueses.
O caso BES, que passou todos os testes de stress da troika, evidenciou também o que já sabíamos: a ideologia subjacente a essa mesma avaliação. O importante era passar a pente fino as contas do Estado social. Mostrar os luxos do serviço nacional de saúde, de pensões acima de 600 euros, da malandragem do rendimento social de inserção e dos subsídios..., justamente porque se queria um alibi para as políticas de cortes, de desmantelamento dos Estado social, que a seguir se impuseram. A ação da troika, além de ter sido complacente com o sistema financeiro, ainda nos fez crer, no caso do BES, com as suas tão rigorosas avaliações positivas, na sua solidez financeira. Mas a dimensão deste caso e o impacto que se adivinha na sociedade e na economia portuguesa exigem uma total mudança na regulação e a supervisão financeira, que tem que se tornar robustamente preventiva e atuar eficazmente. O Banco de Portugal (BdP) não pode garantir uma coisa e depois vir dizer que se enganou ou que o enganaram. Depois das deficiências de regulação evidenciadas no caso BCP, o BdP tem que explicar porque não tomou medidas adequadas ou quais são os seus problemas estruturais e como vai resolvê-los, que o levaram, num intervalo de 15 dias, a enganar-se em quase dois mil milhões nas contas do BES.
Exige-se igual mudança de ação, quer na tramitação da auditoria forense determinada pelo BdP ao caso BES, quer na ação do sistema judicial. Os sacrifícios a que os cidadãos portugueses estão a ser obrigados exigem que nunca mais tenham que assistir à indecência do espetáculo de transferência de culpas, como ocorreu recentemente aquando da prescrição da coima aplicada a Jardim Gonçalves. O poder judicial (incluindo o Ministério Público) e o poder político (que tem a responsabilidade dos meios com os quais o poder judicial, os órgãos de polícia criminal e perícias operam) sabem há muito tempo que é forçoso abandonar modelos de organização e de funcionamento que mostraram à exaustão que não são eficazes no combate à criminalidade económica altamente complexa e que levam a que os processos vão caindo, casos após caso. Já não lhes pedimos que se justifiquem. Exigimos-lhes, sim, que façam as mudanças necessárias para que se crie um paradigma de eficiência e de qualidade na justiça portuguesa na resposta a este tipo de criminalidade. Dentro do atual quadro legal, avançamos alguns fatores de mudança. Desenvolvimento da investigação criminal por uma equipa permanente e multidisciplinar, dirigida pelo Ministério Público, e constituída por magistrados e agentes policiais altamente especializados e por peritos. Esta via, que deve ser a regra para todos os casos de criminalidade económica complexa, pode, entre outros, evitar que o processo fique meses a aguardar por diligências pedidas a determinado órgão de polícia criminal ou por esclarecimentos técnicos, muitas vezes apresentados como pedidos periciais, para que se avance na investigação; permitir um melhor desenvolvimento de linhas e de estratégias de investigação e a sua correção atempada; aprofundar a articulação no âmbito da cooperação judiciária internacional; diminuir as fugas de informação e a violação do segredo de justiça. Desenvolvimento da investigação de acordo com orientações ou protocolos de trabalho que tenham em atenção as melhores práticas e que não devem ser alterados sem o assentimento da coordenação da investigação. Cumprimento rigoroso dos prazos de inquérito, o que obriga ao desenvolvimento de uma estratégia de investigação e à opção por linhas de investigação em função do prazo. Na fase de julgamento, é necessário disponibilizar formação especializada obrigatória a todos os magistrados que poderão vir a julgar este tipo de criminalidade, bem como a assessoria técnica. O Conselho Superior da Magistratura deve acompanhar de perto estes casos no sentido de verificar o estrito cumprimento de todos os prazos processuais e a aplicação de princípios de gestão processual que evitem o arrastamento do caso na fase de julgamento.
Não se pede ao sistema judicial que seja justiceiro em determinado caso concreto. O que se exige é que atue com responsabilidade democrática em casos que tanto estão a lesar os cidadãos portugueses e a nossa democracia. E se o poder político não lhe der os meios de que precisa para agir com eficiência e qualidade, tem o dever democrático de denunciar publicamente a situação. O que não pode é anos depois, quando a montanha "parir o rato", vir escudar-se na falta de meios que não teve para justificar a sua ineficiência.
Director e coordenadora do Observatório Permanente da Justiça do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra