Nós não somos este escaravelho

Um dia um cientista português vai ganhar o Prémio Nobel. Já aconteceu uma vez com Egas Moniz e a lobotomia, o que nos deu a todos a duvidosa honra de sermos todos lobotomizados de nascença. Como é evidente, desejo uma carreira preenchida de sucessos à nossa brava cientista no Cáucaso, incluindo uma mão-cheia de prémios. O meu medo é que depois digam que nós portugueses somos como o escaravelho que ela descobriu, quase uma versão zoológica da Caverna de Platão, seres de tal forma habituado à funda depressão e à falta de horizontes que tenham perdido as asas e os olhos. Às asas, para humanos, chama-se imaginação. À metáfora dos olhos chama-se aqui “vontade de ver”.

Nós, os portugueses, não somos e não podemos ser o escaravelho de Ortobalagan. Não podemos ter perdido a capacidade de imaginar um outro país que não no fundo da gruta. Não podemos ter perdido a vontade de ver, com olhos de ver, o mundo à nossa volta. Não podemos ser um país dividido entre os que não têm imaginação para mais do que isto, e os que se recusam a ver a realidade.

Às vezes receio, confesso, que isso tenha sucedido já. Receio que nos tenhamos tornado num país de comentadores, e comentadores de comentadores, apenas. Num país de espectadores — o escaravelho de Ortobalagan, que tem apenas sete milímetros e perdeu o pigmento por viver longe da luz do sul, apresenta contudo “um alargamento das antenas”. Ora, um país de espectadores não tarda muito a tornar-se num país de vítimas.

Deve haver um limite qualquer para a passividade. Tem de haver um momento em que o escaravelho de Ortobalagan entenda que tem agência e, em consequência, aja. Que não espere, nem desespere, mas faça ele mesmo. E se isso não acontecer ao escaravelho, ao menos que nos aconteça a nós. Mas lá está, só acontece se fizermos e não esperarmos.

Estamos a chegar aos 40 anos do 25 de abril. A ditadura teve 48 anos — 17499 dias durante os quais quiseram que nos tornássemos como este escaravelho, lá na sua gruta chamada da Krubera-Vorónia — sem asas da imaginação nem vontade de ver. Talvez algures na nossa memória genética tenhamos ficado condicionados, habituados a viver sem futuro nem luz, sem capacidade de reação. Mas também noutro recôncavo da memória ficou a centelha que nos fez perceber que podíamos fazer qualquer coisa para nos salvarmos — e mais ainda, que isso nos competia a nós.

Assim sendo, junto aos parabéns o meu obrigado à Dra. Ana Sofia Reboleira. Pela descoberta científica, e por nos ter apresentado uma imagem tão perfeita daquilo em que não nos podemos tornar.

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