Judite
Sentimos uma espécie de vergonha perante os pais que perderam os filhos. Quando os filhos de alguém morrem, parece que falhamos todos. Temos todos a obrigação tácita, humana, de cuidar que isso não aconteça. Desviamos o olhar porque nos é insuportável assumir que uma tristeza assim possa existir. Não entendemos uma tristeza assim. Fugimos-lhe.
Os meus pais perderam um filho. Cresci a ouvir contar pequenas coisas sobre ele. Palavras muito breves para não precipitarem a comoção e acabarem com cada dia. O meu irmão nunca foi um tabu, muito pelo contrário. Foi antes uma evocação que precisava de ser feita, porque de cada vez que se contava a sua história ele vivia um bocadinho outra vez. Embora fosse muito complexo. O seu desaparecimento não tem cura. Fazê-lo viver um bocadinho tem sempre um preço. Mas também tem uma oferta. Lembrá-lo é um modo de auferirmos dele. De o termos.
O rosto de Judite Sousa é-nos familiar. Faz parte da intimidade de todas as casas. Sinto que, um dia quando voltar a dizer-nos sobre as notícias do mundo, vamos descer os olhos por temer o confronto com as marcas daquela tristeza impossível. Não está à altura de ninguém medir-se com uma mãe assim. Em certo sentido, Judite Sousa tornou-se uma pessoa estranha. Uma figura escolhida para o sobre-humano. Como se lhe tivesse sido revelado um segredo, como se fosse escolhida para uma visão. Algo do foro da transcendência. Nós, que nos habituáramos à sua força e estabilidade, teremos dificuldade em normalizar qualquer relação com ela e o mais urgente é isso, que lhe reconheçamos o direito a ser normal.
A situação aberrante de se perder um filho impede a felicidade para sempre, mas eu acredito que há sempre uma celebração a fazer. A de nos constituirmos como memória daqueles que morrem e sermos ainda uma manifestação das suas vidas. Aquilo que dizia acima sobre o meu irmão, somos nós que lhe damos a vida. Nós somos essas pessoas que amámos e amamos.
Uma coisa é clara, a morte de alguém não é o mesmo que regressar a nada. A morte de alguém é algo, é um resultado. Sobra. Ela sobra. O facto de o meu irmão ter morrido não faz com que seja igual a nunca haver nascido. Ele é algo, hoje e para sempre. E é o que celebramos. Celebramos a sua existência, porque a sua morte nunca o reduzirá por completo. Nós somos-lhe a vida. E somos gratos por isso.
Quero dizer é que vale a pena. Seguramente carregados de dor e aprendendo sobre o medo, vale a pena resistirmos até que sejamos uma manifestação mais límpida da vida dos que perdemos. Até que sejamos capazes de os celebrar, homenagear, amar no sentido construtivo do amor. Eu diria que a possibilidade que houver de sorrirmos será o sorriso que também pertence a quem nos morreu. A possibilidade de alguma alegria sempre será a oportunidade da alegria que resta a quem nos morreu. Quem perdemos ganha só o que ganharmos nós. Tem só o que tivermos nós. E é muito nítido que nos desejariam o melhor. Não teremos o melhor, mas o que formos capazes de conquistar será sempre uma conquista e uma alegria partilhadas. Será sempre a alegria que lhes oferecemos também.
Quando vir Judite Sousa a falar sobre as notícias do dia, o que eu espero aconteça em breve, reconhecerei o rosto que a minha mãe teve. Depois, contará o tempo. Até que ela seja o cúmulo das suas pessoas e possa levar às suas pessoas um sorriso outra vez, celebrando-se e celebrando cada uma delas.
Eu estou sempre a querer que deus exista. Devia existir nem que apenas para isto. Um deus com uma missão precisa. Uma só missão, já seria grandioso. A de nos permitir levar um carinho a quem amamos. Porque o amor sem anúncio de retorno torna-se o mais difícil dos amores. Mas é amor. Vale sempre a pena e é, em último caso, o que justifica tudo. Mesmo que o outro não nos possa responder, sabendo bem que nos ama também, enquanto o lembrarmos valeu a pena.