Heróis desconhecidos no mundo da Justiça
A tese da existência dos crimes de sabotagem informática e de coacção lançada pelo Ministério da Justiça não tinha, como era evidente, “pernas para andar”.
A tese da existência dos crimes de sabotagem informática e de coacção lançada pelo Ministério da Justiça, sacrificando dois funcionários no altar da política, não tinha, como era evidente, “pernas para andar”. E o despacho de arquivamento do MP espelha bem essa situação, ao justificar a razão por que se avançou para abertura do inquérito: a documentação que acompanhava a denúncia da ministra da justiça “não revelava factos que consubstanciassem a prática do crime de sabotagem informática. Porém, aquilo que se descrevia também não permitia, por si só, naquele contexto, excluir que tal ilícito tivesse ocorrido”. Quer isto dizer que o MP nem sequer indícios da prática de tal crime encontrou na participação, mas, como “não se podia excluir...”, avançou com o inquérito. Quanto ao crime de coacção, segundo o despacho de arquivamento, “...apesar da referência a eventual coacção ser muito vaga e genérica, procurou-se também clarificar este aspecto”.
E, analisados os documentos enviados pelo Ministério da Justiça e ouvidas as testemunhas e os arguidos, o procurador da República Pedro Verdelho não teve dúvidas em ordenar o arquivamento dos autos: “Não se apuraram indícios de sabotagem informática” e “não foi possível reunir indícios suficientes de que tenha ocorrido qualquer constrangimento”, o qual seria essencial para se poder colocar a hipótese da existência do crime de coacção. Em escassos 15 dias – num sistema judicial que não é conhecido por ser célere – ficou esclarecido que a tese conspiracionista, digna de um qualquer spin doctor de terceira classe, não tinha quaisquer bases.
E, no entanto, a ministra da Justiça enviou a denúncia para a PGR, apoiada num parecer de um secretário de Estado que, por sua vez, se baseou num notável documento intitulado Relatório de Avaliação do processo de adaptação do Citius à Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto). Um documento que, certamente, entrará para os anais da história da administração pública do nosso país.
Os autores deste monumento administrativo são o dr. Carlos Brito e o prof. doutor Rui M. Pereira, respectivamente vogal e presidente do conselho directivo do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ), o organismo responsável pela gestão – e pelo crash – do CITIUS.
Isto é, estamos a falar de uma auto-avaliação feita pelos dirigentes de um organismo ao funcionamento desse mesmo organismo numa concreta situação em que tinha falhado estrondosamente na missão de que estava incumbido: a adaptação do sistema informático Citius à reforma judiciária aprovada pelo Governo.
E porque falhou então o IGFEJ? Não foi por sabotagem nem coacção, já nos esclareceu o MP.
Terá sido a falta de meios? Também não foi por falta de meios, pois logo no início do relatório de avaliação, os seus autores afirmam que “o Conselho Directivo do IGFEJ, IP assume que para a realização deste projecto foram dadas às equipas todas as condições solicitadas, quer ao nível de recursos humanos, quer ao nível de recursos tecnológicos”.
E, tanto quanto apurei, não foi avistado nenhum avião russo que pudesse, de alguma forma, ter perturbado o aéreo espaço do Citius.
Mas – e é esta a chave do mistério – refere-se no relatório, assinado pelo dr. Carlos Brito e pelo prof. doutor Rui M. Pereira, que “... no dia 25 de setembro o Dr. Carlos Brito muda-se do 17.º andar onde se situam os gabinetes do Conselho Directivo, para o 4.º andar da torre H do campus da justiça, piso onde se situam as equipas técnicas envolvidas no processo” e, mais à frente, que “durante aquelas duas semanas, entre 28 de Setembro e 14 de Outubro, o ritmo de trabalho foi contínuo e o Dr. Carlos Brito acompanhou permanentemente todo o processo, de modo a garantir que fosse cumprido como o planeado. Foi instituído o princípio de trabalho de tudo o que fosse possível fazer num dia não deveria ser adiado para o dia seguinte, e só com esse espírito e muito sacrifício pessoal dos trabalhadores das equipas técnicas (...)”.
É minha convicção que se o dr. Carlos Brito se tivesse mudado para o 4.º andar desde o princípio do processo e tivesse instituído, também desde o início, o princípio “não deixes para amanhã, o que podes fazer hoje”, não teríamos tido o crash. Afinal, revela-nos o relatório, no IGFEJ havia, pelo menos, um herói. Tardio, é certo, mas, ainda assim, um herói.
De resto, espera-se, a qualquer momento, a publicação de um merecido louvor a todo o conselho directivo do IGFEJ.