Estado de sítio

Bem podemos considerar o crédito barato como a droga mais dura do nosso tempo.

Por fora, por grupos de exploradores que sabem como acumular capital à distância. Por dentro, pelos homens e mulheres de mão que esses grupos comandam e que instalaram nos centros de decisão política, económica, financeira e nos media. Esses autênticos robots ou drones mortíferos sem moral nem outros princípios que não sejam os da cega obediência aos novos senhores do capital terão a breve trecho a sua recompensa em cubos de açúcar dourado extraído à custa do nosso labor e das nossas penas.

Em tempos de guerra como estes em que vivemos não podemos absolutamente acreditar na propaganda deles nem perder tempo com a desinformação. A riqueza do nosso país medida em termos do PIB era, em 2007, de 169 mil milhões de euros; em 2013, após estes anos de crise financeira e económica que nos sufoca, não produzimos mais de 166 mil milhões de euros. Ou seja, Portugal perdeu seis anos! Andámos para trás.

Claro que nestes seis anos os juros dos empréstimos contraídos foram prestimosamente pagos pelo país aos seus credores, ajudando a manter e continuar o negócio do capital. Isto é, o capital financeiro internacional ganhou seis anos! Safou-se.

O euro não saiu mais fraco, está bem forte, pelo contrário, afirmou Jean-Claude Trichet numa reunião na Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, no passado dia 30 de Abril. Não conseguiu, é certo, tornar-se uma moeda de referência como o dólar. Mas não entrou em colapso e está de boa saúde outra vez. O que se passou, então?

Passou-se que a Europa (e não só Portugal, evidentemente) se tornou mansamente numa semiperiferia do sistema-mundo capitalista. Sofre, pois, com os desmandos do centro, onde se acumula o capital a sério (o centro é hoje também uma rede), nos mesmos termos que as outras semiperiferias. Vive, contudo, em democracia, convivendo como pode com as ditaduras mais ou menos benignas que a acompanham na vassalagem ao centro. Porque nas duras periferias do sistema os ditadores não se escondem.

Foi o capital que fomentou que vivêssemos "acima das nossas possibilidades", seduzindo-nos com duches perfumados de crédito barato para aumentar o consumo interno, durante os anos loucos da introdução do euro. Assim embalado, conseguiu o capital ir vivendo "muito acima das suas possibilidades", num clima de festa brava. Mas como já ninguém sabe fazer milagres neste pobre planeta, num belo dia de 2008 o negócio "gripou". Houve uns tremores no sistema financeiro internacional, uns quantos senhores e senhoras foram considerados "más companhias" e sumiram-se...

Os que ficaram, mais fortes após esta eliminação profiláctica, resignaram-se a ter de continuar o negócio no imediato em termos clássicos e seguros. Decidiram, pois, sem surpresa, começar por punir os mais fracos, obrigando-os a continuar a assegurar o bolo da acumulação do capital, desta vez humilhando-os publicamente, fazendo-os baixar a cabeça de envergonhados por precisarem de pedir dinheiro emprestado a juros. Este é um "tratamento" que a história mostra que resulta. O capital continuou a render.

Qual foi a novidade? Foi, apenas, a de a Europa não se ter apercebido a tempo de que já não era o centro da acumulação e que tinha "evoluído" talvez sem remissão para uma simples coutada, onde agora se usa caçar quando dá na real gana. O que importa no mundo passa-se lá longe. O problema residiu, pois, neste conjunto sem estrutura definida a que se chama Europa. Não no facto de os políticos não nos terem avisado da coisa. Isso não espanta: o esplendor da noite do passado ofusca sempre a luz fresca do amanhecer.

Se a religião era o ópio do povo no século XIX, bem podemos considerar o crédito barato como a droga mais dura do nosso tempo. Quem o promove merece a cadeia!

Não vale a pena, portanto, argumentar muito mais. A racionalidade fria, nua, livre de preconceitos e despida de princípios, é uma arma de destruição maciça. Só se elimina pelo calor. Cada um de nós deve fazer o que é preciso, de acordo com a sua consciência. O futuro de Portugal e da Europa não se vislumbra nos almanaques, nos ecrãs, nem no ciberespaço. Na guerra em que estamos envolvidos cada qual tem de escolher o seu campo. O meu está escolhido há muito tempo.

Professor universitário, físico

Sugerir correcção
Comentar